segunda-feira, 27 de julho de 2015

Domingo de manhã

            E naquele momento, deitada ao lado dele e percebendo os primeiros raios do amanhecer adentrarem pela janela que estava aberta, ela entendeu, com uma clareza incomum, todos os novos sentimentos que inundavam a sua mente. A pessoa deitada ao seu lado, em um sono sereno e profundo, havia lhe proporcionado uma quantidade imensurável de novas impressões, que vagavam inexplicáveis e desconexas, até aquele momento.
            Ela, que havia sentido, mais uma vez, um tipo de paz absoluta, de expansão máxima, de conexão e percepção de todas as coisas, agora olhava um tanto melancólica para o teto do quarto; suas características individuais voltavam a ser estabelecidas e tudo à sua volta retornava à condição anterior, sendo ela limitada, diminuta.
            A sensação curta de plenitude e completa satisfação havia se tornado constante, desde que se apaixonou perdidamente pela pessoa ao seu lado. Ela, que nunca antes amou, agora presenciava, constantemente, o ciclo que vivenciou durante o amanhecer; esse esvanecer, esse distanciamento de si mesmo, que era acompanhado por uma satisfação ilimitada — mas que durava pouco e logo era barrada pelo retorno às condições normais de funcionamento da mente, que voltava a definir objetivos e o indivíduo, bloqueando a sensação de plenitude — apresentava-se, para ela, como uma impressão inexplicável, que não poderia ser definida.
            No entanto, aquele relacionamento, que proporcionava uma quantidade absurda de conhecimento e impressões, acabou por permitir a ela a compreensão de suas sensações maravilhosas e misteriosas, e, exatamente naquela manhã, logo após aquele momento de plenitude, durante a percepção dos primeiros raios solares, ela se tornou capaz de compreender o que se passava em sua mente, foi capaz de determinar, com precisão, todas as suas sensações.
            Todas as suas tentativas desconexas de definição se uniram de um modo misterioso, talvez um único conceito tenha sido o responsável por possibilitar a definição e resolução de todos os outros, que agora emergiam exatos na mente dela. Em meio à sua nova conexão conceitual abrangente, ela percebia o quanto a pessoa ao seu lado havia alterado a sua forma de ser.
            “Não mais possuo uma alma estritamente relacionada a mim; por causa da minha admiração ilimitada, eliminei minha perspectiva individualista, passando a valorizar alguém, externo a mim, muito mais do que agora valorizo a mim mesma.”
            Seus devaneios flutuavam, e, agora que possuía todas as respostas, eram absurdamente satisfatórios, definindo com exatidão os seus sentimentos, sem permitirem o surgimento de dúvidas, de incertezas. Ela se sentia como um cientista que encontrou a proposição exata, irrefutável, que abarcava todas as variáveis e lhe permitia enxergar as coisas da maneira mais próxima de como elas realmente são.
            “Antigamente, quando possuía uma alma limitada, estreita, via-me, geralmente, completamente desesperada, completamente abismada perante a dimensão do espírito e a minha pequenez. Essa sensação desesperadora me acometia constantemente, e finalmente sou capaz de entender o motivo: eu não possuo objetivos longínquos e inverificáveis, que me impeçam de encarar a minha verdadeira condição existencial. Anteriormente, quando eu possuía essa constituição limitada e egoísta, deparava-me com o desespero mais dilacerante, sempre que alcançava um de meus objetivos palpáveis. Perante a destruição do meu objetivo, deparada com a ausência de uma estrutura que mascarasse minha pequenez e todo o pavor que essa pequenez me proporcionava, eu me sentia tentada a arriscar algo, tentada a agir, a fazer alguma coisa que eliminasse essa sensação sufocante de impotência.”
            Enquanto desenvolvia seus pensamentos complexos, ela permanecia imóvel, olhando absorta para o teto, com um olhar profundo, que parecia enxergar em demasia. A luz solar, que naquele momento era capaz de iluminar todo o quarto, parecia acompanhar a sensação de esclarecimento dela, que permanecia deitada.
            “Quando passei a valorizar outra pessoa, muito mais do que a mim mesma, perdi a estrutura habitual da minha mente, tornei-me uma pessoa destituída de alma. Eu não mais sou diminuta, não mais me sinto desesperada perante o desaparecimento dos meus objetivos, mas muito pelo contrário, agora, após a destruição de um objetivo, eu me sinto completamente satisfeita, potente, feliz. Sem uma alma diminuta e exata, sou capaz de alcançar e me tornar apenas espírito, dessa forma obtendo o desejo mais primordial e essencial da nossa mentalidade.”
            Assim como o quarto, sua mente se tornará completamente iluminada. As impressões, anteriormente indecifráveis, que tanto a incomodavam e a deixavam ansiosa, apreensiva, agora possuíam uma explicação irrefutável e, por terem se tornado racionais, não mais incitavam expectativas exageradas e descabidas.
            Entretanto, mesmo sendo ela dotada de uma complexidade e percepção incomuns, ainda era possível identificar a presença de expectativas exageradas, sendo elas voltadas para o conhecimento, para a vontade ilimitada de conhecer. Ela, de forma semiconsciente, pensava que o conhecimento poderia lhe satisfazer por completo, sanando todos os desejos, até mesmo os mais profundos e intrínsecos. Esse ideal profundo fez com que ela se sentisse satisfeita, satisfação essa que ela foi capaz de identificar e reestruturas de acordo com aquilo que ela agora percebia.
            “A nossa mente possui estruturas inatas, que finalmente sou capaz de perceber facilmente. Meu conhecimento se tornou abrangente, permitindo-me refutar e reestruturar tudo aquilo que me influenciava soberanamente, por não ser eu capaz de possuir conhecimento suficiente para alterar minhas impressões. Consigo perceber o quanto o quanto valorizo o conhecimento e o que essa valorização ansiava obter. Por ter obtido meu desejo mais profundo, que é a base de todas as minhas empreitadas, agora possuo a capacidade de entender e refutar todos os meus impulsos. Mesmo assim, ainda sinto a influência das minhas impressões inconscientes; quando encontrei a explicação daquilo que tanto ansiava entender, senti como que, de alguma forma, expandida, e, com essa expansão, mais próxima da imensidão que é o espírito, e isso me deixou satisfeita, feliz. A vontade de potência é intrínseca em nós, mas ela ocorre de forma psíquica, particular, e não tem relação proposições metafísicas. Possuidora de um conhecimento reservado para poucos, sinto-me capaz de refutar qualquer impressão inconsciente, o que me permite possuir uma existência completamente consciente.”

sexta-feira, 17 de julho de 2015

O veredicto

             Devaneios à parte, eu ainda estava apreensivo com a decisão do diretor, com relação a minha permanência na escola. Eu esperava pela expulsão, e essa espera tinha um gosto de renovação, de potencialização e de ampliação de minhas possibilidades; queria recomeçar tudo de novo, em um lugar onde me sentiria bem. A escola ligaria para a minha casa, determinando um dia em que eu deveria me apresentar ao diretor, para que esse me comunicasse seu veredicto. Quatro dias já haviam se passado e a escola ainda não havia ligado. Dois dias após a briga, meus pais foram até a escola e conversaram com o diretor, que não lhes forneceu nenhuma informação sobre o meu futuro acadêmico. Ele havia resguardado sua decisão para transmiti-la apenas a mim, em uma reunião a sós comigo. O diretor disse que eu já tinha idade suficiente para me responsabilizar pelos meus atos, e que a melhor maneira de criar um adulto de sucesso, era incumbindo o jovem de responsabilidades. Enquanto o diretor se abstinha de transmitir sua decisão a mim, restava-me apenas aguardar.
            Utilizei minha “folga forçada” para ler; ia até a grandiosa estante de livros do meu pai, que ficava no escritório, e lia os livros que me chamavam a atenção. Deleitava-me em meio às histórias mais incríveis, ficava fascinado com as maneiras mais peculiares de se interpretar as coisas e me impressionava com as personalidades mais magnânimas e corajosas. E assim eu fui conduzindo os meus dias, respirando do ar mais puro e renovador.
            Seis dias após a briga, durante uma tarde ensolarada e de clima ameno, recebi, finalmente, o telefonema que eu tanto aguardava. Fui pego de surpresa pelo toque do telefone, que ficava no escritório; interrompi a leitura de um livro do Sartre, e atendi ao telefone. Depois de uma conversa curta, fui me aprontar, pois segundo a informação que recebi, eu deveria, ainda naquela tarde, comparecer à escola para conversar com o diretor.
            Como não queria incomodar meus pais, que estavam trabalhando, fui de ônibus até a escola. Chegando lá, anunciei para uma das secretárias que eu estava ali porque fui chamado para conversar com o diretor. Ela me pediu para aguardar, enquanto anunciava ao diretor minha chegada. Sentei em um dos sofás da secretaria, e após alguns minutos, fui chamado pelo diretor em pessoa, que veio até a secretaria para me conduzir à sua sala. Havia somente eu, sentado em um dos três sofás da secretaria, o que facilitou a identificação por parte do diretor, referente a quem estava ali para conversar com ele.
            — Boa tarde. Carlos Oniri?
            — Sim, sou eu.
            — Acompanhe-me até a minha sala — respondeu indiferente, pronunciando parte do que falou já de costas para mim, iniciando o caminho rumo à sua sala.
            Levantei apressado e comecei a segui-lo. O diretor era um homem em torno dos quarenta e cinco anos de idade; suas marcas de expressão faziam-no parecer ainda mais velho. Eu o havia visto apenas algumas vezes, durante alguns anúncios que ele fazia no pátio, para todos os alunos; desde essas breves aparições, eu sentia-me repugnado por causa do seu olhar prepotente e destituído de qualquer intensidade proveniente das profundezas humanas; a sua expressão, quando falava, suscitava um asco profundo em mim.
            A sala do diretor ficava afastada da secretaria, encontrando-se ao final de um corredor não muito longo, à esquerda da secretaria.
            Adentrei a sala do diretor, encostando a porta logo em seguida. Nunca antes havia entrado naquela sala, e a primeira impressão que ela me transmitiu foi aconchegante. Havia uma grande janela, com vidros fumê, no lado esquerdo da sala, com uma cortina vertical, que naquele dia estava completamente aberta, permitindo que quem estivesse na sala pudesse ver o belo jardim que ficava na frente da escola; o lado direito era todo preenchido por prateleiras, que continham livros e arquivos; ao fundo ficava a mesa do diretor, com três cadeiras à frente e um grande quadro, com a imagem do fundador da escola, atrás; pendurado exatamente na metade da altura da parede.
            — Sente-se, Carlos — disse o diretor, ajeitando-se em sua cadeira.
            Eu escolhi a cadeira do meio, dentre as três em que poderia me sentar. Enquanto me sentava, imaginei a grande quantidade de filhos acompanhados pelos pais, que já se sentaram naquelas cadeiras; não tive tempo de desenvolver essa linha de pensamento, pois fui interrompido pelo diretor, que proferia o seu sermão inicial.
            — Não sei o que se passa na cabeça de jovens como você, realmente não consigo vos entender. Mesmo em meio a um ambiente de doutrinas elevadas, vocês conseguem se sentirem insatisfeitos e são nocivos a vocês mesmos e a todos. Eu realmente não consigo entender; utilizo a minha juventude como parâmetro e continuo perplexo com vocês; tanto ódio, tanta rebeldia, para quê? Contra quem? Mas não lhe chamei hoje para conversar porque queria explicações sobre a juventude, acho que nem vocês mesmos estão cientes de seus atos; chamei-lhe porque almejo saber a sua versão da história, e também lhe informarei a decisão que tomei a respeito da sua permanência no colégio. Primeiramente, qual foi o motivo da agressão? — disse-me isso olhando com nojo, situando-se em seu pedestal — que ele mesmo havia criado —, de onde se valorizava em excesso, desprezando a opinião e os sentimentos de todos os outros.
            — Defendi-me de um agressor. Talvez tenha me excedido em minha autodefesa, mas basicamente é isso; se alguém teve um motivo para brigar, esse alguém é o Arthur — respondi de maneira sucinta, sem titubear, com um tom de voz tranquilo e convicto, olhando diretamente para os olhos do diretor.
            Percebi que ele se sentiu confuso com a maneira que respondi ao seu questionamento. Talvez essa não fosse a atitude comum, como os alunos respondiam a ele, não tenho certeza; só sei que após aquela resposta a conversa se transmutou quase que por completo.
            — Como pôde se descontrolar daquela maneira?
            — Não fui capaz de controlar meus impulsos durante aquele momento extremo; voltei a mim após ter dado uns três socos enquanto o Arthur estava caído; essa é uma atitude da qual eu não me orgulho.
            — Você tem consciência dos seus atos, isso é um começo satisfatório; quem sabe um dia você se torne um grande homem como eu.
            Num átimo eu me situei em meio àquela conversa. O diretor não sentia que eu valorizava sua posição, sua personalidade. Em sua ânsia por sentir-se potente e satisfeito consigo mesmo, ele queria se sobrepor a mim, e sentir que eu valorizava tudo o que ele era. Resolvi brincar com aquele homem vaidoso e inseguro.
            — O que é um grande homem na sua concepção?
            — É um homem esforçado, de intelecto avantajado, que é capaz de alcançar o topo da hierarquia social — ele falava de maneira rápida, tentando expressar um ar de segurança que não possuía, sendo essa sua atitude facilmente perceptível.
            O diretor percebeu minha a minha expressão vazia, digna de quem não valoeiza e não concorda, em nenhum aspecto, com o que acabava de ser dito. Sentindo-se frustrado e afrontado, ele fez a mesma pergunta para mim.
            — O que é um grande homem para você?
            — Um grande homem é alguém convicto de si, que não precisa de outrem para validar os seus conceitos e crenças — respondi me concentrando para analisar a maneira como ele iria reagir à minha definição, que atacava ele de maneira oculta.
            — Você ainda é um jovem inexperiente; um dia você irá reformular seus conceitos, adquirindo parâmetros evoluídos.
            Uma resposta de praxe, e evasiva, sendo pronunciada de maneira rápida e insegura, querendo transmitir uma confiança inexistente, com relação ao que era pronunciado. Ah, e não é que no topo da hierarquia social eu me deparo com um exímio asno. Sua resposta de praxe foi seguida por uma tentativa de mudar o assunto.
— Quero agora informar-lhe minha decisão com relação à sua permanência no colégio...
Ele queria mudar de assunto, mas eu queria brincar mais um pouco, por que não? — Sempre mantendo uma expressão indiferente, eu aproveitei a pausa no final da frase e continuei a conversa antiga.
— Com toda a sua sabedoria, adquirida ao longo da vida, transmita-me um de seus aforismos, que irão me poupar de muitos problemas — Perguntei de maneira séria, alguma parte de mim realmente queria obter uma resposta, sendo o resto de mim apenas zombaria; deixai transparecer a parte que desejava obter uma resposta.
— Você tem que tomar cuidado com a maneira como reage às frustrações.
Finalmente uma resposta sincera, fora de toda a prepotência inicial. Senti que o diretor havia se tornado mais humano e tentei explorar aquele conceito, para tentar entendê-lo.
— O que seria uma frustração para você?
— Ficamos frustrados quando não obtemos o que desejamos. Muitas coisas podem nos frustrar, como o fracasso na obtenção de uma posição elevada na hierarquia social, como não termos tanto dinheiro quanto gostaríamos, como não conseguirmos ter como esposa uma bela mulher.
Eu estava conversando com um homem ultramundano, e, de alguma forma, isso me entristeceu. Vi o que a sociedade me reservava, vi o quanto os homens limitados são valorizados, enquanto os homens elevados são marginalizados, excluídos e desencorajados por todos. Eu não quero ser um estereótipo do homem social, nem quero estar próximo a eles; quero estar perto dos homens que moldam o meio, dos que há muito já aceitaram toda a incerteza, todos os acasos, e todas as incongruências, e que nem por isso sentem-se de alguma maneira reduzidos, mas sim mais fortes e donos de si.
Ficamos em silêncio por um tempo; eu me perdia em meio aos meus devaneios, enquanto o diretor se perdia em meio aos dele. De repente, como que desperto de um cochilo inoportuno, o diretor se lembrou do motivo daquela conversa, e começou a expressar sua decisão.
— Chamei-lhe hoje, até aqui, pois almejo lhe informar minha decisão com relação à sua permanência no colégio. Após conversar com os seus professores, descobri que você é um atleta talentoso, e um aluno inteligente, mas preguiçoso; características que são vistas com bons olhos por mim. Infelizmente, a briga chocou a todos os alunos, chocou até mesmo a mim, que nunca vi, em toda a minha carreira como educador, uma ambulância vir até a escola para buscar um aluno desfalecido e ensanguentado. Para que as pessoas superem esse trauma, é necessário que elas não mais se deparem com alguma coisa que possa lembrá-las disso. Sinto lhe informar, mas você está expulso do colégio Riulop.
Senti-me feliz em demasia, mas mantive minha expressão indiferente. Sentia-me revigorado; estava satisfeito com essa alteração abrupta, que me permitia um novo começo. Sem pronunciar nenhuma palavra, o diretor me acompanhou até a porta da sala, e nos despedimos apenas com olhares.
Já na rua, eu me sentia em êxtase; enxergava possibilidades maravilhosas em todas as coisas, e sentia-me potente e extremamente leve. A vida emanava novos ares, sendo todos eles múltiplos e variáveis, permitindo qualquer tipo de arranjo, qualquer configuração do meu conteúdo conceitual e habilitando uma quantidade incalculável de consequências.
           Um mundo de possibilidades infinitas, e uma vida que se renova a todo momento, onde podemos mudar de lugar, mudar a mentalidade, e começar tudo de novo, e de novo, e de novo. Não será esse, o melhor dos remédios para as dores humanas?

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sem alma

Desde sempre tentei desenvolver e entender as minhas impressões, nessa minha busca contínua por aprimoramento conceitual adquiri uma quantidade absurdamente vasta de explicações, de modelos, que fui incapaz de refutar; tudo isso que adquiri pode ser considerado conhecimento.
Por causa dos meus desenvolvimentos contínuos, tornei-me aquilo que muitos classificam como ser sensível, alguém capaz de perceber muitas coisas, de interpretar e entender muito, quando deparado com situações onde as pessoas menos curiosas não conseguem perceber praticamente nada.
A pluralidade conceitual, que é a evidência mais gritante da minha curiosidade sem fim, permite que eu seja capaz de interpretar de forma múltipla, quando me deparo com um acontecimento qualquer. Perante às múltiplas possibilidades que eu me permiti possuir, geralmente termino por me encontrar completamente indeciso, olhando, cheio de dúvidas, uma vastidão interminável de caminhos, de possibilidades. Deparado com minhas múltiplas interpretações pude perceber que eu não era capaz de possuir uma alma, que eu não conseguia me posicionar com firmeza perante nada, pois tudo era vasto e cheio de interpretações. Como eu não conseguia me posicionar em relação aos mais diversos acontecimentos, como eu não conseguia criar um Eu exato, que me posicionasse no mundo, tornei-me alguém incapaz de sentir; eu era tão sensível, tão curioso, tão obstinado em me entender que me tornei alguém incapaz de sentir, incapaz de possuir uma alma.
Sem alma eu flutuava sem rumo pela vida; a moral também havia se tornado inútil para mim. Em meus desenvolvimentos intermináveis eu encontrava as consequências mais benéficas nos atos considerados imorais, assim como os enxergava como sendo realmente nocivos, ou sem consequências relevantes, tudo ao mesmo tempo. Então, por encontrar o bem no mal e o mal no bem, abandonei a moral, abandonei qualquer tipo de proposição exata e imutável, que tentasse estabelecer o que era benéfico ou nocivo para o indivíduo e para o todo.
Eu percebia e entendia muitas coisas, mas não era capaz de direcionar esse conhecimento para nada. Eu percebia a ineficiência dos meus esforços para tentar estabelecer parâmetros exatos e decidi me portar de uma nova maneira. Desisti de tentar encontrar conceitos fixos e passei a me preocupar em entender os motivos e o funcionamento da minha mente, que faziam com que eu interpretasse os acontecimentos de forma variada. Essa minha nova empreitada obteve êxito; comecei a me portar de forma diferente, compreendi que os conceitos fixos eram inúteis e que cada acontecimento é único, exigindo uma interpretação nova, que tenha relação direta com a situação analisada e não reproduza apenas uma interpretação antiga ou aquilo que desejamos enxergar; concentrado na maneira como funcionava minha mente e como esse funcionamento determinava minhas interpretações, fui capaz de ampliar, imensuravelmente, meus conhecimentos sobre o ser humano, sobre os animais, sobre a mente; devorei os livros escritos por indivíduos sem alma, e aprendi muito com eles, suguei o máximo que pude dessas pessoas raras, realmente inteligentes e perceptivas. Esse meu novo modo de ser fez com que meu conhecimento e a minha vida se desenvolvessem desenfreadamente, aproximando-se daquilo que as coisas realmente eram, gerando explicações que realmente pareciam elucidar as minhas sensações, as minhas percepções.
Eu me tornei um ser humano sem alma e sagrado, próximo de encarar as coisas da forma como elas realmente são, próximo de possuir a existência mais potente possível.

O corpo elétrico

            Na maioria dos dias tenho que tomar cuidado, atentar-me, mais do que nunca, às minhas ações e verificar, de modo racional, as possíveis consequências dos meus atos. Essa preocupação redobrada se faz necessária nesses dias, onde me sinto possuidor de uma energia ilimitada, que borbulha dentro de mim espalhando-se para todas as partes do meu corpo e fazendo com que eu aja impetuosamente, potentemente, ultrapassando, e muito, as minhas condições físicas e intelectuais; nesses dias, sinto como que preparado para um esvanecer espontâneo, pronto para me pulverizar em prol de uma causa que atraia toda essa energia que parece ser muito, mas muito mesmo, maior do que eu.
            Quando me encontro nessa condição, que está se tornando cada vez mais recorrente, meu coração bate em um ritmo selvagem, não consigo ficar parado e quando falo emito um som de trovão, um som gutural, que vem direto da alma e expressa, sem a necessidade de palavras, tudo aquilo que sinto. Quando me distraio, nem que seja por um momento, meu corpo começa a se mover involuntariamente, acompanhando o ritmo de um fluxo interno intenso, minha respiração se torna rápida e ofegante e é preciso que eu me concentre novamente, para conter todo esse ímpeto profundo, voraz e selvagem.
            Por causa dessa iminência (que se tornou constante) de me consumir por completo, sucumbindo perante uma força muito maior do que eu, é preciso que eu redobre minha atenção e estabeleça, de forma racional, as minhas limitações. Um corpo elétrico é uma bênção e uma maldição, ao mesmo tempo.

terça-feira, 7 de julho de 2015

O ser incomum

O ambiente não era diferente do comum; várias pessoas, todas elas cheias de frustrações e ódio, perambulavam sem rumo. Para aquelas pessoas o intervalo era o pior momento do dia, pois as obrigava a pensarem por si próprias, obrigava-as a agirem por livre e espontânea vontade, sem terem de obedecer a alguma ordem, e isso incomodava todos aqueles que se encontravam no refeitório, durante o intervalo.
O refeitório sempre estava impecavelmente organizado, todos os utensílios estavam postados em seus devidos lugares, proporcionando, com intenção, a transmissão de um ar de harmonia; no chão não se encontrava sequer uma mancha, assim como nas paredes, que eram brancas e, por causa da boa iluminação do recinto, capazes de ofuscar a vista de quem se atrevesse a fixar seu olhar por muito tempo nelas. Para aquelas pessoas ali presentes, que conseguiam julgar apenas através da aparência das coisas, o ambiente era e impecável, e expressava as qualidades inquestionáveis que a empresa possuía.
Além de transmitir uma imagem superficial e de fácil compreensão para a mentalidade superficial dos funcionários, toda a organização, harmonia, limpeza, de forma sucinta: toda a preocupação com a aparência dos ambientes da empresa eram intrinsicamente necessárias. Todas aquelas pessoas, que frequentavam o refeitório, estavam prontas para odiar, prontas para despejarem, em outrem, todas as suas frustrações, e, para que isso não ocorresse dentro da empresa, era preciso que o ambiente fosse o mais aconchegante possível, de forma que não incitasse o aparecimento de algumas dessas sensações destrutivas, que estavam presentes em excesso na maioria dos funcionários da empresa.
Mesmo deparados com uma instabilidade constante, onde o ódio se mostrava sempre pronto para emergir, as pessoas de davam bem entre si, na medida do possível. Todas elas possuíam a mesma visão de mundo, nutriam os mesmos ideais, valorizavam a si mesmas acima de tudo e sempre mascaravam seus verdadeiros sentimentos. Essa compatibilidade impecável fazia com que todos se sentissem, de alguma forma, mais próximos, mais parecidos, o que os impedia de externarem todo o seu ódio, pois consideravam todos ao redor como semelhantes, como companheiros que estimulavam os conceitos e o ideais mais profundos. No entanto, todo o ódio e as frustrações não deixavam de ser externados. Constantemente aquelas pessoas se revoltavam com a política, com algum time de futebol, com alguma celebridade, etc.; eles sempre encontravam algo para desprezar, algo para transferir todos os seus sentimentos de impotência, de desespero e de mediocridade, que não eram poucos.
Após essa breve análise, podemos classificar a empresa como sendo tranquila, onde um ambiente aconchegante, a semelhança dos ideais e o direcionamento do ódio para objetos longínquos propiciam uma atmosfera sem sobressaltos, serena e, para a alegria de todas aquelas pessoas dotadas de uma percepção lenta, estável, praticamente imutável.
Entretanto, mesmo no paraíso fixo das almas egocêntricas as coisas correm o risco de sofrerem uma mudança abrupta, e foi isso que ocorreu com o ambiente sereno daquela empresa; um ser incomum foi inserido naquele ambiente, comum em demasia, e tudo mudou. Ele, que possuía um semblante despreocupado, andava de maneira magnânima pelos corredores da empresa. Sua atitude tranquila e cínica, referente aos valores vigentes e almejados pela grande maioria dos funcionários, incomodava a todos, que encontraram nesse homem incomum uma mentalidade que, por ser diferente, ameaçava todos os ideais que eram mantidos cegamente, e que evitavam a falta de sentido, assim como evitavam o desespero. O jeito despojado e feliz de levar a vida, e a ameaça aos ideais que todos mantinham inquestionáveis em suas mentes, e que eram utilizados como subterfúgio para afugentar as verdades desoladoras da vida, o que permitia que todos fossem capazes de evitar encarar de frente suas existências mal resolvidas e medíocres, fez com que todas as pessoas odiassem o novo funcionário. Pela primeira vez, em muito tempo, um objeto para onde seria direcionado todo o ódio se encontrava próximo, encontrava-se precisamente ao lado, ao alcance de um soco, ao alcance da violência mais irracional e descabida. E foi esse o caso.
Em apenas dois meses como funcionário, o homem incomum havia causado um rebuliço inimaginável. Todas as frustrações, todos os problemas, eram atribuídos a ele. Toda vez que o ser incomum adentrava alguma repartição, as pessoas relatavam um sentimento ruim, uma espécie de “ambiente pesado”, e isso era confirmado em coro, por todos que tinham contato com ele.
Com o passar do tempo a situação se tornou ainda mais catastrófica. Todo mundo tentava estruturar o caráter do ser incomum, e sempre construíam os personagens mais esdrúxulos, mais bizarros e malévolos, sem possuírem um único motivo para tanto. Para se ter uma ideia, até mesmo a forma como o ser incomum bebia água era utilizada como base para a elaboração de uma característica pessoal que demonstrava uma maldade sem fim. Por fim, todos os gestos eram deturpados para que as pessoas conseguissem enxergar aquilo que elas gostariam de enxergar; o motivo de toda essas deturpações era o questionamento que o ser incomum incitava nas pessoas à sua volta. Vendo seus valores absolutos sendo testados, essas pessoas se apressavam e não hesitavam em tentar desmerecer e rebaixar aquele que incitava o questionamento, até que ele não mais fosse valorizado a ponto de causar um mal-estar conceitual. No entanto, a desvalorização era tão absurda que criava um indivíduo digno de ser responsável por todas as frustrações, tornando-o o alvo perfeito para o ódio ilimitado e para as transferências que protegiam o ego de se sentir impotente, ambas características presentes na maioria dos funcionários.
Ao fim do terceiro mês o ser incomum já havia recebido um apelido, ele era conhecido por todos como sendo o monstro. Ele se tornou o responsável por todos os acontecimentos ruins, que iam desde o café que foi derramado no chão até, pasmem, à nota baixa do filho de um dos funcionários. As demonstrações de desprezo contra ele se tornavam cada vez mais explicitas. Constantemente ele se via obrigado a se livrar de agressores, tanto verbais como físicos, assim como se via obrigado a ignorar insultos gratuitos, que eram pronunciados por todos.
Mesmo com um ambiente completamente hostil à sua volta, o ser incomum se mostrava inabalável, deixando transparecer toda a sua vivacidade, toda a sua alegria pura e sincera. A construção conceitual incoerente, feita pelos funcionários, mostrava o quanto o ser humano é capaz de acreditar em qualquer coisa que deseja, que se propõe a acreditar. Aquele que era considerado o pior ser humano do mundo parecia um santo quando analisado por alguém que possuísse uma interpretação imparcial. Incapaz de odiar, ele possuía um sorriso fraternal, que era interpretado por todos os funcionários como sendo o sorriso de um demônio.
A permanência do ser incomum naquela empresa, que já vinha sendo direcionada para uma estada curta, por causa daquilo que sua constituição incomum causava nas pessoas à sua volta, chegou, finalmente, ao fim, de fato. Durante o almoço, um funcionário, sentado a três mesas de distância do ser incomum, deixou cair sua bandeja, esparramando uma grande quantidade de comida pelo chão, que estava impecavelmente limpo; sem se preocupar em limpar toda aquela comida que estava no chão, o funcionário se dirigiu, cheio de ódio, até a mesa do ser incomum, e, transbordando de raiva, começou a xingar à plena voz.
“Você é o culpado de tudo isso, seu merda, seu monstro! Todos te odeiam, você é o mal da humanidade, você é um monstro do mal, Judas!”
O ser incomum olhou de forma indiferente para aquele interlocutor exaltado, e após uma interrupção de em torno de 5 segundos, voltou a se alimentar despreocupadamente. A sua atitude de indivíduo intocável irritou ainda mais o funcionário exaltado, que tentou partir para cima do ser incomum, mas foi interrompido por outros funcionários.
O acontecimento repercutiu quase que instantaneamente. Todos diziam que o ser incomum era o culpado, explicando que isso foi demonstrado pela maneira como ele se portou perante o confronto, entre ele e o funcionário prejudicado por ele. Todos diziam que aquele semblante sereno e indiferente, durante uma discussão, era digno de alguém que, com certeza, era culpado, e essa afirmação foi defendida por todos, por mais incoerente que possa parecer. Entretanto, que culpa o ser incomum tinha ninguém sabia, mas todos o julgaram culpado.
A diretoria, que se incumbiu de cuidar do caso, decidiu demitir o funcionário que foi acusado por todas as pessoas que presenciaram a confusão. Após quatro meses a empresa recuperou sua atmosfera habitual, as coisas voltaram a ser como eram, sofrendo apenas uma única mudança, o ser incomum ser tornou, para muitos, uma imagem responsável, para sempre, por todos os acontecimentos ruins, uma imagem abjeta e permanente, para onde era direcionado todo o ódio.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Aqueles que nunca realmente existiram

            “A maioria das pessoas nasce póstuma.”; essa expressão me encantou desde a primeira vez que a vi, e o motivo não é muito difícil de compreender.
            Eu, que sempre fui um observador atento, possuía essa expressão em suspenso na minha mente; ela permanecia escondida, ainda desconexa, até que me deparei com um livro escrito por Nietzsche, que fez com que essa expressão emergisse cheia de potência, na minha mente. O texto era preciso, consciente, e a frase no fim expressou, de modo sucinto, tudo aquilo que o autor queria dizer.
            O ser humano é uma espécie rara, e em extinção; a chandala domina o mundo, cria valores e afugenta todos aqueles que tenham o mínimo de consciência. A realidade é reservada para os indivíduos póstumos, que já nasceram mortos.

Fim de tarde

           Em um dia normal, de clima quente, com um céu azul, contendo algumas poucas nuvens, que dançavam harmoniosamente, alterando-se a todo o momento e podendo ser interpretadas das mais variadas formas, dependendo apenas do observador e da sua maneira de pensar. Todos os fatores materiais eram comuns, e não possuíam nenhuma anomalia gritante, que fosse capaz de descaracterizar aquele dia como sendo um dia corriqueiro. Mas quem poderia imaginar... Mesmo em um dia banal, alguém está encostado em uma piscina de fibra, olhando para o céu de múltiplas interpretações com um semblante incomum, profundamente pensativo; com os braços apoiados na borda, um homem permanece imóvel, ele está absorto em seus pensamentos e parece nem sentir a água refrescante tocar a sua pele. Em um dia pacato, comum, ele apresenta uma aparência profundamente consternada, como que se estivesse desesperado. Essa feição é tão discrepante, mas tão discrepante, quando comparada ao ambiente em que esse homem se encontra, que tudo à sua volta parece não ter mais nenhuma importância; o dia banal se torna um cenário de fundo, longínquo e irrelevante. Aquele rosto incomum e profundo é capaz de atrair todos os olhares, fazendo com que tudo à sua volta se torne irrelevante. É impossível não prestar atenção, é improvável que alguém não se sentiria atraído, ou, melhor dizendo, seria incomum alguém não se sentir sensibilizado e magnetizado por aquele fenômeno incomum, sentindo-se, qualquer um, obrigado a chegar mais perto, necessitando enxergar melhor, entender melhor aquilo que tanto encantava; como que hipnotizadas, as pessoas se aproximariam, tentando chegar o mais próximo possível, chegando perto, cada vez mais perto, hipnotizadas por aqueles olhos castanho escuro profundos, até que batessem na testa daquele homem solitário, desse modo se tornando perceptível o limite, o máximo de aproximação que podem alcançar. Mesmo suscitando toda essa curiosidade, ele permanece sozinho, isolado, absorto em pensamentos que parecem ser penosos, mas que não nos é possível entender por completo. Talvez seja esse mistério que tanto nos fascina, e também nos faz perguntar: “O que será que incita pensamento assim tão profundos?” “Será que esse homem enxerga coisas que nós nunca seremos capazes nem de imaginar?”