quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Enxergando como um ser social

            O pai comprimia, com o pé, o rabo de um pequeno rato, que se debatia desesperadamente, pressentindo a iminência de sua morte. Próximo ao rato, um garoto, de idade em torno de 11 anos, permanecia imóvel e assustado, observando apreensivo à cena.
            O ambiente onde ocorria esse acontecimento havia se tornado desimportante, encontrando-se praticamente ausente, restando, como referência, apenas os pisos brancos, que pareciam ser de uma cozinha; esse único detalhe perceptível apenas era possível por causa do rato, que, de cor cinza escuro, se tornava ainda mais evidente, quando se debatia sobre o piso branco.
            Ignorando o olhar assustado do garoto, o pai se inclinou até ele e o aproximou ainda mais do rato.
            — Olhe para mim, olhe para mim — disse com um tom de voz autoritário — Hoje irei lhe ensinar uma valiosa lição. É preciso que se concentre; que deixe fluir sua imaginação, que, por sinal, é formidável, e capaz de construir cenários e personalidades complexas; e faça tudo o que eu disser. Tudo bem?
            Ainda assustado, o filho foi incapaz de responder, olhando aterrorizado para o pai, tentando pronunciar as palavras que insistiam em permanecer ocultas.
            — Não tenha medo, meu filho. Essa lição é de suma importância, e será muito útil em sua vida, isso eu posso lhe garantir.
            O garoto se sentiu mais confiante com as palavras obstinadas do pai, fazendo com que consentisse, com a cabeça, gesto esse que agradou o pai, que prosseguiu com a experiência que estava disposto a proporcionar ao filho.
            — Agora feche os olhos. Imagine-se como um ser único no mundo, todo o resto, externo a ti, é inanimado, uma ilusão. O mundo existe em função apenas de ti, e nada mais; você é o único ser de verdade nesse mundo, sem você nada disso existiria, tudo ocorre em função de você, é referente a você. Nada além de ti tem sentimentos, ou uma personalidade, ou objetivos, medos, etc.; tudo o que existe está presente apenas em função de você, o mundo não existiria se não fosse por sua causa — disse o pai com sua voz convicta, sem hesitação — Consegue se imaginar como sendo um ser desses?
            O garoto consentiu com a cabeça. O par, então, continuou a falar.
            — Abra os olhos, filho. Agora lhe peço que continue a imaginar que você é uma pessoa desse tipo. Quero que você permita que que essa possibilidade de ser se aproprie de ti, sem restrições, passando a direcionar seus pensamentos e coordenar seus atos. Quero que você estruture seus conceitos de acordo com essas características que citei para você.
            Os dois permaneceram em silêncio por um breve momento. A expressão do filho, anteriormente assustada, havia se transmutado por completo; agora ele possuía uma feição imponente, convicta, que não mais demonstrava toda a sua insegurança anterior, o medo de alguns momentos antes. Seu olhar anteriormente passivo e analítico, agora era tomado por um direcionamento convicto, inabalável, que demonstrava a presença de uma interpretação específica para as coisas, que era aplicada independentemente daquilo que era observado, aquilo que se apresentava, externamente.
            — Meu filho — disse o pai se ajoelhando, ainda mantendo o rato preso pelo rabo, e se aproximando ainda mais do filho — Eu lhe forneci informações que agora lhe permitem enxergar o mundo da maneira que a maioria das pessoas, e dos animais, o vê. Eu fiz isso não para que você adquira uma perspectiva igual a essa, mas muito pelo contrário. Nós somos seres evoluídos, situando-nos em um patamar onde não existe qualquer tipo de mesquinharia, ou parâmetros primitivos e animalescos. No entanto, não quero ser eu o responsável por criar um bobo, que, por causa da inexistência de aspectos egoístas em sua mente, não consegue enxergar as ações mesquinhas, egoístas e abjetas das pessoas; é preciso que você consiga produzir, em seu espírito, não só a bondade, mas também a perversidade, a fim de você seja capaz de identificá-la nas pessoas com quem você irá se relacionar ao longo de sua vida; afinal, nós apenas identificamos aquilo que esteja, de algum modo, presente dentro de nós.
            O filho absorveu cada palavra daquele discurso, alojando-as em sua mente, de forma abrangente e profunda. O pai, quando percebeu a rápida assimilação daquilo que ensinava ao garoto, sorriu satisfeito, e continuou com a lição que pretendia ensinar ao filho.
            — Ainda mantendo essa personalidade recém-criada, esmague esse rato, sem dó. Ele não é nada, só você existe.

            O garoto direcionou um olhar indiferente ao rato, ergueu o máximo que pôde sua perna direita e pisou, violentamente, no rato, três vezes.

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