segunda-feira, 29 de junho de 2015

Anotação aleatória

Sinto que estou próximo a mais um daqueles momentos onde minha mente parece transbordar e é preciso encontrar uma válvula de escape para dispersar todo esse turbilhão, que, se não direcionado a algo, pode acabar por incomodar ainda mais. No entanto, não me incomodo com esse ímpeto profundo, que sempre se acumula em mim e exige um ato que prometa sanar alguma carência profunda da nossa mentalidade, muito pelo contrário, gosto dele; ele impulsiona tentativas, jogos, decisões, e isso é bom, satisfazer a necessidade mais profunda da existência não é o suficiente para mim.
Por fim, deixo-me enganar; crio uma alma para mim, e jogo, e brinco, e me divirto, e experimento, e arrisco, geralmente faço todas essas coisas ao mesmo tempo, é interessante. Mas, mesmo nesse meu ambiente extremamente consciente, às vezes me surpreendo; quase sempre essa surpresa ocorre pelo fato de eu ver alguém realmente levando algo a sério; quando me deparo com isso, fico me perguntando: “ Será que essa pessoa não conhece as coisas de verdade?” “Por que ela leva tudo tão a sério?” Não perco muito tempo com esses pensamentos, uma breve observação torna evidente o quanto essas pessoas, que me assustam, são ignorantes e cegas; sem possuírem a capacidade de pensar por si próprias elas perseguem ideais inalcançáveis, elas estão sempre se distraindo, correndo atrás de algo e evitando, a todo custo, qualquer momento de reflexão, por menor que seja. Sem questionarem nada, sem realmente entender nada, essas pessoas vagam cegas pela vida, criando almas diminutas, imutáveis e inquestionáveis, o que faz com que o verdadeiro desejo da mente permaneça ainda mais distante, ainda mais inalcançável. Essa distância absurda, entre aquilo que somos e aquilo que realmente queremos, faz com que as pessoas se sintam extremamente impulsionadas a fazer algo para alterar essa sua condição, faz com que elas se sintam cheias de energia, e prontas para direcionarem essa energia para alguma atividade, para alguma válvula de escape que prometa sanar o nosso desejo mais profundo. Ver essas pessoas traçarem objetivos e se arriscarem em empreitadas e tentativas intermináveis me incomoda; uma vida inexplorada e em completa ignorância sempre me incomodou, e muito.
Entretanto, não me revolto por completo com essas pessoas, que infelizmente são a maioria daqueles que encontro no dia-a-dia, pois, até mesmo eu, com o auxílio de todo o meu conhecimento, às vezes não consigo estabelecer uma meta que me incentive a agir. Meu mundo despreocupado é perfeito, ele se aproxima da realidade, mas não quero viver como um asceta, que abandona o mundo estruturado pelos seres humanos e vive encerrado em meio ao seu êxtase absoluto, em meio ao seu conhecimento perfeito e abrangente; esse tipo de existência asceta é absurdamente apática, é absurdamente estática. Eu sei que nada realmente importa, mas é preciso que ampliemos o nosso conhecimento, ampliemos nossas experiências, e para que isso ocorra é preciso que arrisquemos de verdade, e para arriscarmos de verdade é preciso que nos iludamos, é preciso que acreditemos que aquilo a que nos propomos fazer irá realmente proporcionar o que a nossa mente realmente almeja. É nesse tipo de ilusão construtiva que me proponho a brincar de vez em quando, mas que às vezes não sou capaz.
Não sei ao certo qual é o motivo dessa minha incapacidade; sei que não é preguiça, nem medo de perder tempo com algo — a muito já deixei de sentir isso, e foi uma longa jornada até que eu me desvencilhasse desse medo de perder tempo e do afunilamento da vida —; o que ocorre é um pouco mais complexo: a minha imaginação, por mais poderosa que me pareça ser, às vezes não consegue instaurar os motivos certos, que me incitem a dedicar-me a alguma tarefa em específico.
Não é sempre que essa incapacidade ocorre, para falar a verdade, ela é um tanto incomum. Antigamente, a incapacidade de me dedicar a um ideal criado por mim era ainda mais recorrente, sendo praticamente constante; naquela época eu poderia me surpreender se me dedicasse a alguma atividade que eu realmente desejasse. Felizmente, tudo mudou quando consegui identificar uma estrutura psíquica destrutiva, que me incitava a agir, quase que desesperadamente. Talvez, essa minha classificação pareça estranha, mas ela é mais simples do que parece; Jung caracteriza-a como sendo a sombra, como sendo uma condição absurda que proporciona uma quantidade absurda de ímpeto e energia; a sombra pode ser considerada um momento de desespero extremo, onde aquilo que mais importa para nós está prestes a ser aniquilado, e, perante a destruição da nossa representação do mundo, arriscamo-nos sem pudor, sem receios, para que possamos salvar aquilo que para nós é importante. Após identificar a minha sombra, passei a utilizá-la constantemente, com o intuito de me dedicar aos objetivos que eu propunha para mim.
Outro aspecto que facilitava a definição de qualquer objetivo era a ausência de arquétipos; por não possuir um ideal, eu me sentia cheio de energia, cheio de vontade — em alguns momentos essa vontade chegava a ser assustadora, por causa de sua potência e a falta de um ideal que amenizasse toda essa potência violenta —; sem objetivos pré-estabelecidos, tornei-me capaz de direcionar minha vontade para onde eu bem entendesse, sem que para isso fosse preciso me desvencilhar de uma estrutura, de uma forma de me posicionar perante o mundo, tarefa que exigiria muito, muito mesmo, de mim. Talvez, desvencilharmo-nos de um arquétipo seja uma das tarefas mais complicadas que existem, mas após realizada nosso conhecimento e controle sobre o intelecto se tornam absurdamente desenvolvidos.
Todas essas características me proporcionaram habilidades incríveis; todo o meu conhecimento, conquistado com muito sangue e suor, permitia que eu enxergasse o mundo e a vida de forma abrangente, da forma mais próxima daquilo que as coisas realmente são, sem que me sentisse oprimido perante tantas possibilidades, tanto vazio, tantas dúvidas, tantas impressões.

Mergulho

       Sentir as dores e a doença da alma é importante para que possamos identificar os mecanismos que são utilizados por determinadas doutrinas, assim entendendo a relação de alguns conceitos com a vida das pessoas e, acima de tudo, descobrindo como as coisas realmente funcionam e são estruturadas. Uma jornada rumo a condições deploráveis de existência parece um absurdo, mas não é, muito pelo contrário, é uma empreitada profunda e esclarecedora, que requer coragem. Quando retornamos das profundezas do espírito, tudo parece diferente; sentimos uma nova felicidade, mais abrangente, inabalável e intensa; sentimos uma confiança irredutível, mantida por conceitos profundos e que foram verificados; abandonamos todas as esperanças e expectativas, o que, ao contrário do que todos pensam, é a melhor coisa que pode acontecer conosco; tornamo-nos sensíveis a todas as alegrias e inabaláveis perante toda mediocridade; deixamos de nos sentir reprimidos pelo mistério e a incerteza da vida. O retorno desses aventureiros raros é sempre triunfal, podendo ser percebido em sua expressão facial e em cada gesto. Eles tornaram-se seres profundamente superficiais, e estão prontos para refutar qualquer conceito descabido.

Sobre os sentimentos

         A psicanálise instaura que os sentimentos provêm dos instintos, mas isso é absurdo. Os instintos são condutas definidas pela nossa alma, pela nossa forma de nos posicionarmos no mundo, são imposições provenientes da maneira como foi moldado o nosso ser e, dessa forma, determinam o nosso prazer e desprazer, ou, melhor dizendo, direcionam o que é considerado como aumento ou diminuição da potência. A satisfação dos instintos não é o nosso móbil mais profundo, nossa verdadeira constituição repousa além dos instintos, sendo que a satisfação dos mesmos supre necessidades mais profundas e essenciais.

O único resquício

Paro por um instante; tento me desvencilhar de tudo o que possa me distrair. Muito lentamente minha mente vai se acalmando, os turbilhões violentos e intermináveis de pensamentos vão se tornando uma linha organizada e serena, calma a ponto de poder eu compreender o que se passa nas profundezas do meu intelecto; e é isso que me proponho a fazer.
Essa tarefa de investigador da psique sempre me entreteve ao longo da minha vida. Desde pequeno me esforço para entender tudo aquilo que sinto, tarefa essa que, a princípio, foi muito difícil para mim. Com o passar do tempo minha mente se tornou mais ágil, minha capacidade de imaginar se tornou mais potente, mais domesticada, assim como minha capacidade de me dedicar, por muito tempo, à investigação de algum assunto; todos esses novos atributos me permitiram elaborar modelos mais precisos e abrangentes, relacionando quase todas as coisas que eu sou capaz de perceber.
Atualmente, esse meu exercício constante adquiriu novas proporções. Utilizando papeis e uma lapiseira, proponho-me a tentar transmitir todas as minhas impressões e concepções. Agora eu faço com que meus pensamentos turbulentos e inconstantes repousem serenos, claros e eternos, em várias folhas de papel. Eu escrevo, escrevo e escrevo; tento expressar desde o pensamento mais simples até o mais complexo, sem deixar nada escondido na minha mente. Essa tarefa, um tanto complicada, passou a ser minha prioridade, tomando espaço de muitas outras formas de utilizar o meu tempo.
Esse direcionamento específico do meu tempo já foi, em momentos anteriores da minha vida, uma atitude que muito me incomodou. Minha imaginação, sempre incansável, criava os cenários mais incríveis para todas as minhas possíveis atividades, fazendo com que a limitação de tudo aquilo que eu poderia fazer se tornasse absurdamente sufocante, quase sempre me obrigando a abandonar a direção à qual me propunha seguir. O tempo passou e consegui domesticar a minha imaginação; atualmente utilizo-a para o meu próprio benefício, e não mais me permito acreditar em quimeras absurdas, infundadas.
Entretanto, mesmo com toda minha maturidade adquirida —  que se deve, em grande parte, à literatura e à escrita —, não sei se a minha imaginação, mesmo em uma condição quase que incontrolável, seria capaz de desconstruir ou desmerecer essas atividades tão nobres, às quais me proponho, cheio de vontade, atualmente. Digo isso pois a arte — que desenvolvo na forma de escrita — é a única forma de externarmos a nossa introspecção e comunicar a todas a forma como interpretamos as coisas; ela será o único vestígio de nossa existência, e eu, que sempre pensei diferente, sinto uma necessidade quase que alucinante de fazer arte, de poder mostras para as pessoas como eu enxergo o mundo, a existência.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Tudo muda

Olho para ela, da mesma forma que olhava antes, mas não consigo sentir o mesmo que antes. Alguma coisa aconteceu... Em algum momento tudo se alterou, e não mais senti que éramos parecidos, ou que poderíamos nos ajudar mutuamente para que conseguíssemos acelerar nossa busca por autoconhecimento, só pode ter acontecido isso. Agora nos olhamos como estranhos, que não compartilham nada em comum.
É até engraçado pensarmos no quanto a vida se renova e é incerta. Às vezes, temos de nos ater veementemente a uma concepção, não permitindo que ela seja questionada, assim como não devemos nos lembrar dela a todo o momento, policiando-nos, constantemente, para que aquilo que pensamos e valorizamos não seja perdido, não seja desconstruído pela realidade. Eu afirmo isso por experiência própria, mesmo correndo o risco de ser taxado como iludido que se prende ao passado.
Nessa interação, anteriormente especial, que agora esvaneceu num átimo, acho que mão me atei a conceitos antigos, e esse foi o meu erro. Durante minha vida conturbada, deparei-me com situações que exigiram toda a minha concentração e o meu esforço. Quando voltei a encontrar ela, após nem um ano em que estivemos separados, já não me lembrava, com precisão, das características que tanto me encantavam, e, olhando-a com um olhar cheio de curiosidade e esperança, não reconheci aquela pessoa que eu estimava muito, mas muito pelo contrário, encontrei alguém que me enojou.
Enxergar demais e não se ater a concepções idealistas são problemas grandiosos. Uma das poucas pessoas que me agradava, hoje não mais suscita algo em mim.
As coisas à nossa volta estão mudando em um ritmo alucinante. Eu realmente gostaria de não enxergar tanto, para que pudesse possuir conceitos imutáveis, que me agradassem de alguma forma. Essa minha constituição flutuante, que sempre me permite enxergar tudo à minha volta, faz com que eu desconstrua, constantemente, meus conceitos e sinta nojo de todas as pessoas com as quais mantenho relações. Se enxergasse menos, eu poderia ter um relacionamento limitado e supérfluo, que duraria muito tempo e, com a ajuda da minha imaginação, poderia até mesmo me satisfazer.

A mente se estrutura na forma de linguagem

Antigamente, os símbolos definiam coisas divinas, que se situavam para além da nossa percepção, do nosso conhecimento; os conceitos e parâmetros eram regidos através desses símbolos insondáveis. No classicismo, esses símbolos tornaram-se determináveis, denominando parâmetros naturais e que poderiam ser analisados. Os conceitos se formam em torno desses símbolos; nossa percepção parece apenas notar e assimilar àquilo que esteja, de alguma forma, relacionado a um símbolo pré-estabelecido.
Os símbolos (as palavras) têm uma relação de semelhança na mente das pessoas, fazendo emergir conceitos profundos, proporcionando o entendimento de expressões por intermédio da associação do que é dito com o que já vivenciamos, já sentimos, já percebemos. O estudo da linguagem normatiza essas associações geradas pelos símbolos, assim como o dinheiro normatiza as trocas, que têm como elemento mais profundo a necessidade.
A evolução da linguagem nos permite elaborar discursos mais precisos, que podem ser assimilados pelas pessoas, permitindo-as a função crítica, onde antes — por causa da falta de clareza no discurso — apenas havia o comentário. Quem sabe, um dia, possamos expressar todas as coisas de forma clara e precisa, não mais dando possibilidade para que se façam críticas e comentários sobre as palavras utilizadas para que fosse transmitida uma ideia.
A linguagem permite que as pessoas expressem o que sentem; a gramática existe para que as pessoas possam se comunicar, conseguindo expressar e suscitar sua subjetividade em outrem. Através da linguagem, podemos estudar a evolução das ciências e da interação do homem com o meio. A gramática geral estuda as relações das linguagens com as coisas e sua identidade em relação aos idiomas primordiais; ela também compara as linguagens, uma com as outras.
A comunicação só é possível através dos verbos, eles nos possibilitam expressar o que sentimos nas profundezas do ser. O verbo expressa condições de tempo e a condição que a pessoa se encontra. Eles são o elemento principal da linguagem, possibilita-nos a comunicação; sem eles, ainda estaríamos urrando palavras que não expressam nada.
O verbo é o principal elemento da linguagem, mas se ela fosse constituída somente por verbos, teríamos um vocabulário gigantesco, que complicaria muito a expressão do que sentimos; para evitar esse problema, foram instituídos os sujeitos, os adjetivos, e vários outros elementos da linguagem, que, quando articulados e utilizados no discurso, eliminam a necessidade do uso de um verbo em particular para designar determinada maneira de sentir, de ser. O modo como as palavras foram criadas, remetem, em grande parte, ao que querem dizer, ao que realmente expressam; cada vogal é capaz de conter uma imensa linha de ligações ocultas; podemos constatar isso quando feita uma indução reversa, rumo aos primórdios da linguagem.
Nos primórdios da linguagem, os acontecimentos eram utilizados como comunicação. Gritos de dor, choro, riso, etc. A linguagem toma como base esses elementos de comunicação primitivos, utiliza suas construções como referências relacionadas a esses primeiros modos de comunicação. Uma linguagem mais primitiva como o hebraico, tem as suas palavras diretamente extraídas das situações cotidianas. Não podemos negar que toda a linguagem tenta se aproximar, o máximo possível, da natureza das coisas; quando não se aproxima, torna-se ineficiente.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Tentando entender o que não nos permitem entender

Com um olhar profundo ele avança pela calçada, diferenciando-se dos demais transeuntes. Ele se destaca, e isso era absurdamente evidente; posso afirmar, de forma convicta, que aquele sujeito incomum possuía um “não sei o que”, era uma característica que foge à nossa compreensão, mas que, no entanto, é absolutamente necessária para nós.
É difícil até mesmo tentar transmitir as sensações que aquele indivíduo incomum suscitava em quem o observava. Apenas olhá-lo incitava um turbilhão de sentimentos, todos eles sendo magníficos. Era um “não sei o quê”, realmente era isso, acho que essa é a melhor maneira de explicar; será que consegui me fazer entender?
Acho que a pergunta foi um tanto quanto desnecessária, obviamente não consigo me fazer entender. Preciso formular, de uma forma precisa, a minha impressão; tarefa essa que me é difícil, por nem mesmo eu entender o melhor modo de descrever aquilo que vi; mas vamos lá, quem sabe eu consiga, através da escrita, encontrar os verdadeiros motivos que tanto me agradaram naquele ser incomum. A escrita já me proporcionou epifanias que alteraram a minha concepção para sempre, espero que dessa vez ocorra o mesmo, desejo muito que ocorra o mesmo! Aquele indivíduo preencheu alguma carência profunda, ele parecia conhecer e saber lidar com tudo aquilo que tanto me incomoda; entender aquilo que ele suscitou em mim seria o mesmo que que entender a vida, entender tudo. Pode parecer exagero, mas essa é realmente a forma que penso; por um breve momento me senti mais próximo, do que nunca, de saciar todos os meus desejos, de encontrar tudo aquilo que, de forma inconsciente, eu sempre quis.
Com o celular desligado, e afastado de qualquer tipo de distração, concentrei-me em reproduzir a cena que presenciei, dessa vez transmitindo tudo aquilo que vinha, à minha cabeça, para o papel. Sentindo-me guiado por uma tarefa que prometia recompensar-me com satisfações inimagináveis, comecei a escrever avidamente, cheio de ímpeto, cheio de vontade.
No entanto, essa tarefa, à qual me propus, cheio de vontade, mostrou-se extremamente desgastante e complexa; após algumas horas de reflexão o papel permanece praticamente em branco, algumas frases desconexas foram escritas, mas ainda não transmitem meu verdadeiro sentimento, consigo perceber isso claramente. Para ser sincero, acho que não consigo encontrar palavras que sejam capazes de racionalizar e ordenar aquilo que sinto; em minha mente o sentimento permanece desconexo por não ser eu capaz de classificá-lo. Essa característica me irrita, ela me irrita muito! Uma sensação que a minha linguagem não é capaz de classificar e de integrar ao meu conhecimento, que não me é possível assimilar de forma racional; essa característica traz uma inquietação escandalosa para a minha mente; é o mesmo que uma percepção incompreensível, que somos capazes de sentir, mas incapazes de classificar e integrar ao nosso conhecimento. Essa característica de incerteza e de possibilidades ilimitadas me incomoda; sempre me pego desenvolvendo, de maneira irracional, tudo aquilo que vejo e que não sou capaz de classificar de forma racional. Meus desenvolvimentos absurdos me irritam; eles são sempre exagerados e criam expectativas absurdas, que obviamente não existem, mas que, mesmo com a incoerência gritante, são difíceis de serem corrigidos e controlados.
Escrever sobre aquele indivíduo incomum começou a me incomodar muito; eu não possuía conhecimento suficiente para classificar o que percebia; acho que era por causa da falta de outras pessoas como aquela, o motivo pelo qual eu não conseguia abordar o tema em questão com mais frequência. Grande parte das pessoas que encontro me suscitam sentimentos péssimos; dessa forma, como posso eu entender uma influência tão bela em meio às impressões abjetas que sempre encontrei, e que estruturam o meu pensamento? Talvez seja impossível, mas só de perceber emergir um sentimento belo já faz com que me sinta melhor e mais evoluído do que a maioria das pessoas que conheci. Em meio aos pensamentos que surgem na minha mente, talvez a descoberta de belos sentimentos em mim seja a única coisa satisfatória; de resto sinto-me péssimo, minha mente vagueia em meio às minhas percepções incompletas e cheias de possibilidades. Percebo que várias sensações exageradas começam a ser construídas. Ah, como isso me irrita.
          Por fim, após perceber minha ineficiência em entender meus sentimentos e ver que minha mente começou a desenvolver, de forma inconsciente e exagerada, aquilo que me esforcei para tentar compreender , percebo que a tarefa à qual me propus foi decepcionante. Não fui capaz de definir nada de concreto, e terminei por adquirir ilusões que ainda me incomodarão muito. O meu ambiente e o conhecimento que possuo não permitem a compreensão daquilo que senti; queria encontrar mais pessoas como a que encontrei hoje, queria interagir com elas, conviver com elas, ser como elas. Essa quimera percorreu minha mente por muito tempo, mas já estou próximo de desconstruí-la; esses eclipses raros, que sentem a vida de forma abrangente, que vivem corajosamente, que parecem não ser incomodados por nada, devem ser observados com desatenção, e devem ser acompanhados por uma bebida que nos ajude a esquecer. Eles são experimentos que deram errado, são seres que não se adaptaram à nossa antinatureza. São tão cheios de vida, de ímpeto, de energia, de vontade e, ao mesmo tempo, indiferentes... Isso não pode ser normal.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Quarta-feira à tarde

Sentei na beirada da cama e a olhava pentear o cabelo. Ela estava sentada em um banquinho almofadado, de costas para mim, e se olhava no grandioso espelho da prateleira, enquanto passava, vagarosamente, a escova pelos longos fios de cabelo. Aquela atividade despretensiosa, que evidenciava ainda mais o alheamento dela perante o mundo à sua volta, parecia assumir características mecânicas, adquirindo um ritmo contínuo; nesse contexto a atividade que era executada parecia perder ainda mais a importância, tornando-se algo supérfluo, que poderia ser caracterizado como uma ação inconsciente, que era efetuada por impulso, enquanto a verdadeira atividade, que realmente interessava à menina que penteava o cabelo, permanecia oculta, imperscrutável.
Eu permaneci olhando-a, hipnotizado. Em cima do espelho da penteadeira, havia uma lâmpada mais potente que a do cômodo em que estávamos, ela fazia com que aquele cabelo, que estava sendo penteado, assumisse um brilho incomum, lindo. Era impossível desviar o olhar. De repente, o pente não mais deslizou, graciosamente, pelo cabelo castanho escuro; eu me assustei com aquela alteração brusca no movimento que estava sendo executado, e, como que saindo de um estado hipnótico, percebi que ela me olhava pelo espelho. Também a olhei pelo espelho; ficamos em silêncio, olhando-nos por um tempo, de forma indireta, mas não menos intensa. Pareceu-me que o tempo havia parado, juro que não me é possível relatar quanto tempo permanecemos nos olhando. Fui resgatado de minha condição contemplativa pela pergunta que ela me fez:
— Você dá muita importância à aparência?
Fiquei assustado com a pergunta, e tentei me atentar à expressão que ela manteve enquanto pronunciava aquelas palavras. Mesmo olhando, anteriormente, para o seu rosto, consegui perceber sua expressão facial apenas no final da pergunta; não sei o que eu estava olhando antes para não me atentar à maneira como ela se portava enquanto se dirigia a mim; definitivamente, meus olhos estavam focados no reflexo do seu rosto, mas minha mente estava ausente, em devaneios profundos... Mesmo me atentando para sua expressão apenas no final da pergunta, pude perceber que era um questionamento próprio, que foi exposto de forma espontânea. Ela aguardava ansiosa a minha resposta. Percebi que aquela era uma pergunta que ela fazia para poucos e que realmente significava algo, podendo ser caracterizada como uma importante forma de avaliação daqueles com quem ela interagia; não sei o que me fez chegar a essa conclusão, acho que foi a forma como ela ficou me olhando, enquanto apoiava o pente em sua perna, interrompendo por completo a atividade que tanto lhe agradava anteriormente; essa pausa repentina salientava ainda mais a importância da pergunta.
Tive dificuldade para expressar minha maneira de pensar, ainda mais com aquele olhar penetrante que ela mantinha em direção aos meus olhos. Desviei meu olhar e o mantive, em um primeiro momento, na porta do guardarroupa, o que me possibilitou formular minha resposta com calma.
— Eu não dou importância nenhuma, e é engraçado, levando em consideração os valores de mundo atuais, que supervalorizam a aparência, o físico, as roupas — após esse início me senti mais confiante, e voltei a olhá-la nos olhos. — Eu acho as pessoas sempre tão iguais, mas, em raras exceções, parece que uma pessoa é capaz de suscitar um “não sei o que”; algo como que uma força, que emerge sei lá de onde. Quando isso ocorre, essa pessoa passa a ser bonita, ela se destaca das demais, e o brilho em seus olhos a torna única, inconfundível.
        Após minha resposta permanecemos em silêncio, contemplando-nos. Pelo modo como seu rosto se iluminou, pude perceber que compartilhávamos a mesma concepção sobre a beleza. Nossa interação ficava cada vez mais abrangente. Nós — que nunca tínhamos experimentado nada do tipo — aproveitávamos cada momento em que podíamos travar conhecimento, mas sempre mantendo um ritmo cadenciado, para que pudéssemos aproveitar ao máximo cada momento.

O arquétipo longínquo

   De acordo com Jung, todos os seres humanos possuem projeções que amenizam e tornam suportável a nossa existência. Para ele, essas projeções — que poderiam ser caracterizadas como ideais que prometem satisfazer os nossos desejos profundos e inverificáveis — devem ser elaboradas em relação a objetos externos longínquos, que não podem ser experimentados por nós. Jung afirma que a desconstrução de um arquétipo acorre quando o conteúdo do mesmo acaba por ser experimentado por nós, dessa maneira não mais sendo um conteúdo inexplorado e desenvolvido estritamente pela imaginação, mas sim se tornando um ideal acessível à consciência e todo o seu senso crítico e sua desconstrução e invalidação sistemática dos parâmetros. Essa percepção consciente nos permite a reordenação do conteúdo do arquétipo, que não mais poderia ser utilizado como ideal que ameniza nossos impulsos mais profundos e desesperadores; nesse caso, para que o arquétipo continue a existir e nós não nos deparemos com o potencial absurdo e desesperador das profundezas do nosso intelecto, é preciso que estabeleçamos arquétipos inverificáveis, que podem permanecer para sempre como ideais que não permitem que nos deparemos com a assustadora profundeza selvagem, insaciável e potente do nosso intelecto.

Aula de história

      Considero-me muito sortudo por ter lido o livro Guerra e paz em tenra idade. Esse livro me proporcionou uma perspectiva mais coerente, com relação a muitas coisas com as quais eu me deparava na minha vida, fazendo com que eu, finalmente, fosse capaz de compreender algumas coisas, que antes eram indecifráveis para mim, sendo essa incompreensão extremamente pungente. Mas, acima de tudo, o livro me permitiu perceber o quão ineficiente e limitado é o ensino escolar, ele me mostrou o quanto os professores não estudaram e não entendem os assuntos que estão expondo aos alunos; o livro me mostrou que os professores simplesmente decoram algumas informações, sem as relacionar a nada, sem tentarem entendê-la em todas as suas nuances, e as expõem aos alunos como sendo verdades absolutas, exigindo que os mesmos absorvam aqueles conceitos infundados, e os reprovando se não são capazes de enxergarem o mundo dessa forma limitada e pré-concebida. Leon Tolstoi me permitiu perceber tudo isso, com suas palavras simples e certeiras. O conhecimento que o livro me proporcionou, permitiu que eu adquirisse uma perspectiva importantíssima, que foi estabelecida após uma aula de história, que se tratava das guerras napoleônicas, e que descreveu toda a campanha francesa em território russo, dando ênfase à “estratégia russa” de combate, e que o professor falava com orgulho, classificando-a como um grande trunfo da inteligência russa; toda vez que repetia as palavras: “terra arrasada”, ficava entusiasmado.
      Ele era um professor novo, tanto em idade quanto em tempo em que exercia a profissão. Recém-saído da universidade, que era uma das mais renomadas do país, ele expunha com convicção seus conhecimentos adquiridos naquela instituição.
      — Os russos aproveitaram a extensão do seu território, auxiliado às condições climáticas rigorosas da região, para atrair os franceses para o interior do país, queimando todas as cidades e provisões, com isso enfraquecendo o exército francês, o que possibilitou uma vitória esmagadora
do exército russo em um combate posterior, onde os franceses, que se encontravam em condições deploráveis, sucumbiram de maneira vexaminosa...
      Eu me contive perante a essa explanação simplificada e errônea, sobre a campanha de Napoleão em território russo. Fiquei calado e indignado, pensando nos verdadeiros motivos da derrota francesa, que foram apresentados de maneira abrangente e direta no livro Guerra e paz. Comecei a pensar em como seria a reação de Tolstoi se assistisse a essa aula. Pensei em como o grande responsável pela vitória russa — que o livro deixava claro como sendo a ideologia russa, arraigada pela religião ortodoxa que incutiu na mente dos russos a relação de Napoleão com algo como que um anticristo — foi simplesmente ignorado pelo professor. Fiquei espantado em não ouvir o professor mencionar as represálias do governo russo ao recuo do exército, que era suscitado pelo medo ao exército de Napoleão, que parecia ser invencível. Era insuportável ouvir o meu professor, sabendo que aquilo que ele chamava de  “estratégia da terra arrasada” na verdade era uma consequência menos organizada e despretensiosa, proveniente do desespero da população russa, que por enxergarem Napoleão como um anticristo, preferiam queimar e destruir todos os seus pertences — mesmo com as represálias das autoridades — do que entrega-los a esse ser que era visto como sendo um demônio. Fiquei triste por ver que o verdadeiro herói russo, na guerra contra Napoleão, foi esquecido. Kutuzov foi um general corajoso, que enfrentou o desprezo de grande parte do exército russo, acreditou em sua percepção e estratégia, e deixou que o “animal ferido”, que ele considerou como sendo o exército francês após a grande batalha de Borodino, deixasse de ser um exército e se transformasse em um bando de saqueadores, que por si só incendiou a grande Moscou, que era constituída, em grande parte, por edifícios de madeira, pois ela é um ótimo isolante térmico. Minha indignação beirou o absurdo quando um C.D.F. babaca elogiou os russos, por serem capazes de bolarem essa estratégia. Aquilo foi demais para mim, eu odiava ouvir aquele imbecil falar; um dia, ele questionou a existência da vida na terra, pois tinha visto uma matéria que falava sobre um robô que foi construído para identificar indícios de vida em outros planetas, mas que quando testado no planeta Terra não indicou a presença de vida; eu tinha que me deparar com esses tipos de comentários; quanto de estupor é
necessário para que uma mente se tornasse aquela porcaria, que deturpa todo o conhecimento e dá formatos absurdos para tudo? Pior que os seus comentários eram valorizados em demasia; talvez ele tenha se tornado o tipo de burro idiota que a escola almeja criar, e que eu nunca seria capaz de me permitir ser.
      Fui abrigado a me retirar daquela sessão emburrecedora, e fiquei sentado pensando, em um dos bancos de concreto no pátio. Depois daquele dia eu nunca mais prestei atenção a nenhuma aula, eu ficava sentado no funda da sala, fazendo qualquer coisa que não fosse prestar atenção às merdas que eram pronunciadas por todos. No final, eu me tornei muito melhor do que todos eles, eu não me deixei emburrecer.