Sinto que estou
próximo a mais um daqueles momentos onde minha mente parece transbordar e é
preciso encontrar uma válvula de escape para dispersar todo esse turbilhão,
que, se não direcionado a algo, pode acabar por incomodar ainda mais. No
entanto, não me incomodo com esse ímpeto profundo, que sempre se acumula em mim
e exige um ato que prometa sanar alguma carência profunda da nossa mentalidade,
muito pelo contrário, gosto dele; ele impulsiona tentativas, jogos, decisões, e
isso é bom, satisfazer a necessidade mais profunda da existência não é o
suficiente para mim.
Por fim,
deixo-me enganar; crio uma alma para mim, e jogo, e brinco, e me divirto, e
experimento, e arrisco, geralmente faço todas essas coisas ao mesmo tempo, é interessante.
Mas, mesmo nesse meu ambiente extremamente consciente, às vezes me surpreendo;
quase sempre essa surpresa ocorre pelo fato de eu ver alguém realmente levando
algo a sério; quando me deparo com isso, fico me perguntando: “ Será que essa
pessoa não conhece as coisas de verdade?” “Por que ela leva tudo tão a sério?”
Não perco muito tempo com esses pensamentos, uma breve observação torna
evidente o quanto essas pessoas, que me assustam, são ignorantes e cegas; sem possuírem
a capacidade de pensar por si próprias elas perseguem ideais inalcançáveis,
elas estão sempre se distraindo, correndo atrás de algo e evitando, a todo
custo, qualquer momento de reflexão, por menor que seja. Sem questionarem nada,
sem realmente entender nada, essas pessoas vagam cegas pela vida, criando almas
diminutas, imutáveis e inquestionáveis, o que faz com que o verdadeiro desejo
da mente permaneça ainda mais distante, ainda mais inalcançável. Essa distância
absurda, entre aquilo que somos e aquilo que realmente queremos, faz com que as
pessoas se sintam extremamente impulsionadas a fazer algo para alterar essa sua
condição, faz com que elas se sintam cheias de energia, e prontas para
direcionarem essa energia para alguma atividade, para alguma válvula de escape
que prometa sanar o nosso desejo mais profundo. Ver essas pessoas traçarem
objetivos e se arriscarem em empreitadas e tentativas intermináveis me
incomoda; uma vida inexplorada e em completa ignorância sempre me incomodou, e
muito.
Entretanto, não
me revolto por completo com essas pessoas, que infelizmente são a maioria
daqueles que encontro no dia-a-dia, pois, até mesmo eu, com o auxílio de todo o
meu conhecimento, às vezes não consigo estabelecer uma meta que me incentive a
agir. Meu mundo despreocupado é perfeito, ele se aproxima da realidade, mas não
quero viver como um asceta, que abandona o mundo estruturado pelos seres
humanos e vive encerrado em meio ao seu êxtase absoluto, em meio ao seu
conhecimento perfeito e abrangente; esse tipo de existência asceta é
absurdamente apática, é absurdamente estática. Eu sei que nada realmente
importa, mas é preciso que ampliemos o nosso conhecimento, ampliemos nossas experiências,
e para que isso ocorra é preciso que arrisquemos de verdade, e para arriscarmos
de verdade é preciso que nos iludamos, é preciso que acreditemos que aquilo a
que nos propomos fazer irá realmente proporcionar o que a nossa mente realmente
almeja. É nesse tipo de ilusão construtiva que me proponho a brincar de vez em
quando, mas que às vezes não sou capaz.
Não sei ao certo
qual é o motivo dessa minha incapacidade; sei que não é preguiça, nem medo de
perder tempo com algo — a muito já deixei de sentir isso, e foi uma
longa jornada até que eu me desvencilhasse desse medo de perder tempo e do
afunilamento da vida —; o que ocorre é um pouco mais complexo: a minha
imaginação, por mais poderosa que me pareça ser, às vezes não consegue
instaurar os motivos certos, que me incitem a dedicar-me a alguma tarefa em
específico.
Não é sempre que
essa incapacidade ocorre, para falar a verdade, ela é um tanto incomum.
Antigamente, a incapacidade de me dedicar a um ideal criado por mim era ainda
mais recorrente, sendo praticamente constante; naquela época eu poderia me
surpreender se me dedicasse a alguma atividade que eu realmente desejasse.
Felizmente, tudo mudou quando consegui identificar uma estrutura psíquica
destrutiva, que me incitava a agir, quase que desesperadamente. Talvez, essa
minha classificação pareça estranha, mas ela é mais simples do que parece; Jung
caracteriza-a como sendo a sombra, como sendo uma condição absurda que
proporciona uma quantidade absurda de ímpeto e energia; a sombra pode ser
considerada um momento de desespero extremo, onde aquilo que mais importa para
nós está prestes a ser aniquilado, e, perante a destruição da nossa representação
do mundo, arriscamo-nos sem pudor, sem receios, para que possamos salvar aquilo
que para nós é importante. Após identificar a minha sombra, passei a utilizá-la
constantemente, com o intuito de me dedicar aos objetivos que eu propunha para
mim.
Outro aspecto
que facilitava a definição de qualquer objetivo era a ausência de arquétipos;
por não possuir um ideal, eu me sentia cheio de energia, cheio de vontade —
em alguns momentos essa vontade chegava a ser assustadora, por causa de sua
potência e a falta de um ideal que amenizasse toda essa potência violenta —;
sem objetivos pré-estabelecidos, tornei-me capaz de direcionar minha vontade
para onde eu bem entendesse, sem que para isso fosse preciso me desvencilhar de
uma estrutura, de uma forma de me posicionar perante o mundo, tarefa que
exigiria muito, muito mesmo, de mim. Talvez, desvencilharmo-nos de um arquétipo
seja uma das tarefas mais complicadas que existem, mas após realizada nosso
conhecimento e controle sobre o intelecto se tornam absurdamente desenvolvidos.
Todas essas
características me proporcionaram habilidades incríveis; todo o meu
conhecimento, conquistado com muito sangue e suor, permitia que eu enxergasse o
mundo e a vida de forma abrangente, da forma mais próxima daquilo que as coisas
realmente são, sem que me sentisse oprimido perante tantas possibilidades,
tanto vazio, tantas dúvidas, tantas impressões.