E
naquele momento, deitada ao lado dele e percebendo os primeiros raios do
amanhecer adentrarem pela janela que estava aberta, ela entendeu, com uma
clareza incomum, todos os novos sentimentos que inundavam a sua mente. A pessoa
deitada ao seu lado, em um sono sereno e profundo, havia lhe proporcionado uma
quantidade imensurável de novas impressões, que vagavam inexplicáveis e
desconexas, até aquele momento.
Ela,
que havia sentido, mais uma vez, um tipo de paz absoluta, de expansão máxima,
de conexão e percepção de todas as coisas, agora olhava um tanto melancólica
para o teto do quarto; suas características individuais voltavam a ser
estabelecidas e tudo à sua volta retornava à condição anterior, sendo ela
limitada, diminuta.
A
sensação curta de plenitude e completa satisfação havia se tornado constante,
desde que se apaixonou perdidamente pela pessoa ao seu lado. Ela, que nunca
antes amou, agora presenciava, constantemente, o ciclo que vivenciou durante o
amanhecer; esse esvanecer, esse distanciamento de si mesmo, que era acompanhado
por uma satisfação ilimitada — mas que durava pouco e logo era barrada
pelo retorno às condições normais de funcionamento da mente, que voltava a
definir objetivos e o indivíduo, bloqueando a sensação de plenitude —
apresentava-se, para ela, como uma impressão inexplicável, que não poderia ser
definida.
No entanto, aquele
relacionamento, que proporcionava uma quantidade absurda de conhecimento e
impressões, acabou por permitir a ela a compreensão de suas sensações
maravilhosas e misteriosas, e, exatamente naquela manhã, logo após aquele
momento de plenitude, durante a percepção dos primeiros raios solares, ela se
tornou capaz de compreender o que se passava em sua mente, foi capaz de
determinar, com precisão, todas as suas sensações.
Todas as suas tentativas
desconexas de definição se uniram de um modo misterioso, talvez um único
conceito tenha sido o responsável por possibilitar a definição e resolução de
todos os outros, que agora emergiam exatos na mente dela. Em meio à sua nova
conexão conceitual abrangente, ela percebia o quanto a pessoa ao seu lado havia
alterado a sua forma de ser.
“Não mais possuo uma alma
estritamente relacionada a mim; por causa da minha admiração ilimitada,
eliminei minha perspectiva individualista, passando a valorizar alguém, externo
a mim, muito mais do que agora valorizo a mim mesma.”
Seus
devaneios flutuavam, e, agora que possuía todas as respostas, eram absurdamente
satisfatórios, definindo com exatidão os seus sentimentos, sem permitirem o
surgimento de dúvidas, de incertezas. Ela se sentia como um cientista que
encontrou a proposição exata, irrefutável, que abarcava todas as variáveis e
lhe permitia enxergar as coisas da maneira mais próxima de como elas realmente
são.
“Antigamente,
quando possuía uma alma limitada, estreita, via-me, geralmente, completamente
desesperada, completamente abismada perante a dimensão do espírito e a minha
pequenez. Essa sensação desesperadora me acometia constantemente, e finalmente
sou capaz de entender o motivo: eu não possuo objetivos longínquos e
inverificáveis, que me impeçam de encarar a minha verdadeira condição
existencial. Anteriormente, quando eu possuía essa constituição limitada e
egoísta, deparava-me com o desespero mais dilacerante, sempre que alcançava um
de meus objetivos palpáveis. Perante a destruição do meu objetivo, deparada com
a ausência de uma estrutura que mascarasse minha pequenez e todo o pavor que
essa pequenez me proporcionava, eu me sentia tentada a arriscar algo, tentada a
agir, a fazer alguma coisa que eliminasse essa sensação sufocante de impotência.”
Enquanto
desenvolvia seus pensamentos complexos, ela permanecia imóvel, olhando absorta
para o teto, com um olhar profundo, que parecia enxergar em demasia. A luz
solar, que naquele momento era capaz de iluminar todo o quarto, parecia
acompanhar a sensação de esclarecimento dela, que permanecia deitada.
“Quando
passei a valorizar outra pessoa, muito mais do que a mim mesma, perdi a
estrutura habitual da minha mente, tornei-me uma pessoa destituída de alma. Eu
não mais sou diminuta, não mais me sinto desesperada perante o desaparecimento
dos meus objetivos, mas muito pelo contrário, agora, após a destruição de um
objetivo, eu me sinto completamente satisfeita, potente, feliz. Sem uma alma
diminuta e exata, sou capaz de alcançar e me tornar apenas espírito, dessa
forma obtendo o desejo mais primordial e essencial da nossa mentalidade.”
Assim
como o quarto, sua mente se tornará completamente iluminada. As impressões,
anteriormente indecifráveis, que tanto a incomodavam e a deixavam ansiosa, apreensiva,
agora possuíam uma explicação irrefutável e, por terem se tornado racionais,
não mais incitavam expectativas exageradas e descabidas.
Entretanto,
mesmo sendo ela dotada de uma complexidade e percepção incomuns, ainda era
possível identificar a presença de expectativas exageradas, sendo elas voltadas
para o conhecimento, para a vontade ilimitada de conhecer. Ela, de forma semiconsciente,
pensava que o conhecimento poderia lhe satisfazer por completo, sanando todos os
desejos, até mesmo os mais profundos e intrínsecos. Esse ideal profundo fez com
que ela se sentisse satisfeita, satisfação essa que ela foi capaz de
identificar e reestruturas de acordo com aquilo que ela agora percebia.
“A
nossa mente possui estruturas inatas, que finalmente sou capaz de perceber
facilmente. Meu conhecimento se tornou abrangente, permitindo-me refutar e
reestruturar tudo aquilo que me influenciava soberanamente, por não ser eu
capaz de possuir conhecimento suficiente para alterar minhas impressões.
Consigo perceber o quanto o quanto valorizo o conhecimento e o que essa
valorização ansiava obter. Por ter obtido meu desejo mais profundo, que é a
base de todas as minhas empreitadas, agora possuo a capacidade de entender e
refutar todos os meus impulsos. Mesmo assim, ainda sinto a influência das
minhas impressões inconscientes; quando encontrei a explicação daquilo que
tanto ansiava entender, senti como que, de alguma forma, expandida, e, com essa
expansão, mais próxima da imensidão que é o espírito, e isso me deixou
satisfeita, feliz. A vontade de potência é intrínseca em nós, mas ela ocorre de
forma psíquica, particular, e não tem relação proposições metafísicas. Possuidora
de um conhecimento reservado para poucos, sinto-me capaz de refutar qualquer
impressão inconsciente, o que me permite possuir uma existência completamente
consciente.”