O
ambiente não era diferente do comum; várias pessoas, todas elas cheias de
frustrações e ódio, perambulavam sem rumo. Para aquelas pessoas o intervalo era
o pior momento do dia, pois as obrigava a pensarem por si próprias, obrigava-as
a agirem por livre e espontânea vontade, sem terem de obedecer a alguma ordem,
e isso incomodava todos aqueles que se encontravam no refeitório, durante o
intervalo.
O
refeitório sempre estava impecavelmente organizado, todos os utensílios estavam
postados em seus devidos lugares, proporcionando, com intenção, a transmissão
de um ar de harmonia; no chão não se encontrava sequer uma mancha, assim como
nas paredes, que eram brancas e, por causa da boa iluminação do recinto,
capazes de ofuscar a vista de quem se atrevesse a fixar seu olhar por muito
tempo nelas. Para aquelas pessoas ali presentes, que conseguiam julgar apenas
através da aparência das coisas, o ambiente era e impecável, e expressava as
qualidades inquestionáveis que a empresa possuía.
Além
de transmitir uma imagem superficial e de fácil compreensão para a mentalidade
superficial dos funcionários, toda a organização, harmonia, limpeza, de forma
sucinta: toda a preocupação com a aparência dos ambientes da empresa eram
intrinsicamente necessárias. Todas aquelas pessoas, que frequentavam o
refeitório, estavam prontas para odiar, prontas para despejarem, em outrem,
todas as suas frustrações, e, para que isso não ocorresse dentro da empresa,
era preciso que o ambiente fosse o mais aconchegante possível, de forma que não
incitasse o aparecimento de algumas dessas sensações destrutivas, que estavam
presentes em excesso na maioria dos funcionários da empresa.
Mesmo
deparados com uma instabilidade constante, onde o ódio se mostrava sempre
pronto para emergir, as pessoas de davam bem entre si, na medida do possível.
Todas elas possuíam a mesma visão de mundo, nutriam os mesmos ideais,
valorizavam a si mesmas acima de tudo e sempre mascaravam seus verdadeiros
sentimentos. Essa compatibilidade impecável fazia com que todos se sentissem,
de alguma forma, mais próximos, mais parecidos, o que os impedia de externarem
todo o seu ódio, pois consideravam todos ao redor como semelhantes, como
companheiros que estimulavam os conceitos e o ideais mais profundos. No entanto,
todo o ódio e as frustrações não deixavam de ser externados. Constantemente
aquelas pessoas se revoltavam com a política, com algum time de futebol, com
alguma celebridade, etc.; eles sempre encontravam algo para desprezar, algo
para transferir todos os seus sentimentos de impotência, de desespero e de
mediocridade, que não eram poucos.
Após
essa breve análise, podemos classificar a empresa como sendo tranquila, onde um
ambiente aconchegante, a semelhança dos ideais e o direcionamento do ódio para
objetos longínquos propiciam uma atmosfera sem sobressaltos, serena e, para a
alegria de todas aquelas pessoas dotadas de uma percepção lenta, estável,
praticamente imutável.
Entretanto,
mesmo no paraíso fixo das almas egocêntricas as coisas correm o risco de
sofrerem uma mudança abrupta, e foi isso que ocorreu com o ambiente sereno
daquela empresa; um ser incomum foi inserido naquele ambiente, comum em demasia,
e tudo mudou. Ele, que possuía um semblante despreocupado, andava de maneira magnânima
pelos corredores da empresa. Sua atitude tranquila e cínica, referente aos
valores vigentes e almejados pela grande maioria dos funcionários, incomodava a
todos, que encontraram nesse homem incomum uma mentalidade que, por ser diferente,
ameaçava todos os ideais que eram mantidos cegamente, e que evitavam a falta de
sentido, assim como evitavam o desespero. O jeito despojado e feliz de levar a
vida, e a ameaça aos ideais que todos mantinham inquestionáveis em suas mentes,
e que eram utilizados como subterfúgio para afugentar as verdades desoladoras
da vida, o que permitia que todos fossem capazes de evitar encarar de frente
suas existências mal resolvidas e medíocres, fez com que todas as pessoas
odiassem o novo funcionário. Pela primeira vez, em muito tempo, um objeto para
onde seria direcionado todo o ódio se encontrava próximo, encontrava-se
precisamente ao lado, ao alcance de um soco, ao alcance da violência mais
irracional e descabida. E foi esse o caso.
Em
apenas dois meses como funcionário, o homem incomum havia causado um rebuliço
inimaginável. Todas as frustrações, todos os problemas, eram atribuídos a ele.
Toda vez que o ser incomum adentrava alguma repartição, as pessoas relatavam um
sentimento ruim, uma espécie de “ambiente pesado”, e isso era confirmado em
coro, por todos que tinham contato com ele.
Com
o passar do tempo a situação se tornou ainda mais catastrófica. Todo mundo
tentava estruturar o caráter do ser incomum, e sempre construíam os personagens
mais esdrúxulos, mais bizarros e malévolos, sem possuírem um único motivo para
tanto. Para se ter uma ideia, até mesmo a forma como o ser incomum bebia água
era utilizada como base para a elaboração de uma característica pessoal que
demonstrava uma maldade sem fim. Por fim, todos os gestos eram deturpados para
que as pessoas conseguissem enxergar aquilo que elas gostariam de enxergar; o
motivo de toda essas deturpações era o questionamento que o ser incomum
incitava nas pessoas à sua volta. Vendo seus valores absolutos sendo testados,
essas pessoas se apressavam e não hesitavam em tentar desmerecer e rebaixar
aquele que incitava o questionamento, até que ele não mais fosse valorizado a
ponto de causar um mal-estar conceitual. No entanto, a desvalorização era tão
absurda que criava um indivíduo digno de ser responsável por todas as
frustrações, tornando-o o alvo perfeito para o ódio ilimitado e para as
transferências que protegiam o ego de se sentir impotente, ambas
características presentes na maioria dos funcionários.
Ao
fim do terceiro mês o ser incomum já havia recebido um apelido, ele era
conhecido por todos como sendo o monstro. Ele se tornou o responsável por todos
os acontecimentos ruins, que iam desde o café que foi derramado no chão até,
pasmem, à nota baixa do filho de um dos funcionários. As demonstrações de
desprezo contra ele se tornavam cada vez mais explicitas. Constantemente ele se
via obrigado a se livrar de agressores, tanto verbais como físicos, assim como
se via obrigado a ignorar insultos gratuitos, que eram pronunciados por todos.
Mesmo
com um ambiente completamente hostil à sua volta, o ser incomum se mostrava
inabalável, deixando transparecer toda a sua vivacidade, toda a sua alegria
pura e sincera. A construção conceitual incoerente, feita pelos funcionários,
mostrava o quanto o ser humano é capaz de acreditar em qualquer coisa que
deseja, que se propõe a acreditar. Aquele que era considerado o pior ser humano
do mundo parecia um santo quando analisado por alguém que possuísse uma
interpretação imparcial. Incapaz de odiar, ele possuía um sorriso fraternal,
que era interpretado por todos os funcionários como sendo o sorriso de um
demônio.
A
permanência do ser incomum naquela empresa, que já vinha sendo direcionada para
uma estada curta, por causa daquilo que sua constituição incomum causava nas
pessoas à sua volta, chegou, finalmente, ao fim, de fato. Durante o almoço, um
funcionário, sentado a três mesas de distância do ser incomum, deixou cair sua
bandeja, esparramando uma grande quantidade de comida pelo chão, que estava
impecavelmente limpo; sem se preocupar em limpar toda aquela comida que estava
no chão, o funcionário se dirigiu, cheio de ódio, até a mesa do ser incomum, e,
transbordando de raiva, começou a xingar à plena voz.
“Você
é o culpado de tudo isso, seu merda, seu monstro! Todos te odeiam, você é o mal
da humanidade, você é um monstro do mal, Judas!”
O
ser incomum olhou de forma indiferente para aquele interlocutor exaltado, e
após uma interrupção de em torno de 5 segundos, voltou a se alimentar
despreocupadamente. A sua atitude de indivíduo intocável irritou ainda mais o
funcionário exaltado, que tentou partir para cima do ser incomum, mas foi
interrompido por outros funcionários.
O
acontecimento repercutiu quase que instantaneamente. Todos diziam que o ser
incomum era o culpado, explicando que isso foi demonstrado pela maneira como
ele se portou perante o confronto, entre ele e o funcionário prejudicado por
ele. Todos diziam que aquele semblante sereno e indiferente, durante uma discussão,
era digno de alguém que, com certeza, era culpado, e essa afirmação foi
defendida por todos, por mais incoerente que possa parecer. Entretanto, que
culpa o ser incomum tinha ninguém sabia, mas todos o julgaram culpado.
A
diretoria, que se incumbiu de cuidar do caso, decidiu demitir o funcionário que
foi acusado por todas as pessoas que presenciaram a confusão. Após quatro meses
a empresa recuperou sua atmosfera habitual, as coisas voltaram a ser como eram,
sofrendo apenas uma única mudança, o ser incomum ser tornou, para muitos, uma
imagem responsável, para sempre, por todos os acontecimentos ruins, uma imagem abjeta
e permanente, para onde era direcionado todo o ódio.
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