terça-feira, 7 de julho de 2015

O ser incomum

O ambiente não era diferente do comum; várias pessoas, todas elas cheias de frustrações e ódio, perambulavam sem rumo. Para aquelas pessoas o intervalo era o pior momento do dia, pois as obrigava a pensarem por si próprias, obrigava-as a agirem por livre e espontânea vontade, sem terem de obedecer a alguma ordem, e isso incomodava todos aqueles que se encontravam no refeitório, durante o intervalo.
O refeitório sempre estava impecavelmente organizado, todos os utensílios estavam postados em seus devidos lugares, proporcionando, com intenção, a transmissão de um ar de harmonia; no chão não se encontrava sequer uma mancha, assim como nas paredes, que eram brancas e, por causa da boa iluminação do recinto, capazes de ofuscar a vista de quem se atrevesse a fixar seu olhar por muito tempo nelas. Para aquelas pessoas ali presentes, que conseguiam julgar apenas através da aparência das coisas, o ambiente era e impecável, e expressava as qualidades inquestionáveis que a empresa possuía.
Além de transmitir uma imagem superficial e de fácil compreensão para a mentalidade superficial dos funcionários, toda a organização, harmonia, limpeza, de forma sucinta: toda a preocupação com a aparência dos ambientes da empresa eram intrinsicamente necessárias. Todas aquelas pessoas, que frequentavam o refeitório, estavam prontas para odiar, prontas para despejarem, em outrem, todas as suas frustrações, e, para que isso não ocorresse dentro da empresa, era preciso que o ambiente fosse o mais aconchegante possível, de forma que não incitasse o aparecimento de algumas dessas sensações destrutivas, que estavam presentes em excesso na maioria dos funcionários da empresa.
Mesmo deparados com uma instabilidade constante, onde o ódio se mostrava sempre pronto para emergir, as pessoas de davam bem entre si, na medida do possível. Todas elas possuíam a mesma visão de mundo, nutriam os mesmos ideais, valorizavam a si mesmas acima de tudo e sempre mascaravam seus verdadeiros sentimentos. Essa compatibilidade impecável fazia com que todos se sentissem, de alguma forma, mais próximos, mais parecidos, o que os impedia de externarem todo o seu ódio, pois consideravam todos ao redor como semelhantes, como companheiros que estimulavam os conceitos e o ideais mais profundos. No entanto, todo o ódio e as frustrações não deixavam de ser externados. Constantemente aquelas pessoas se revoltavam com a política, com algum time de futebol, com alguma celebridade, etc.; eles sempre encontravam algo para desprezar, algo para transferir todos os seus sentimentos de impotência, de desespero e de mediocridade, que não eram poucos.
Após essa breve análise, podemos classificar a empresa como sendo tranquila, onde um ambiente aconchegante, a semelhança dos ideais e o direcionamento do ódio para objetos longínquos propiciam uma atmosfera sem sobressaltos, serena e, para a alegria de todas aquelas pessoas dotadas de uma percepção lenta, estável, praticamente imutável.
Entretanto, mesmo no paraíso fixo das almas egocêntricas as coisas correm o risco de sofrerem uma mudança abrupta, e foi isso que ocorreu com o ambiente sereno daquela empresa; um ser incomum foi inserido naquele ambiente, comum em demasia, e tudo mudou. Ele, que possuía um semblante despreocupado, andava de maneira magnânima pelos corredores da empresa. Sua atitude tranquila e cínica, referente aos valores vigentes e almejados pela grande maioria dos funcionários, incomodava a todos, que encontraram nesse homem incomum uma mentalidade que, por ser diferente, ameaçava todos os ideais que eram mantidos cegamente, e que evitavam a falta de sentido, assim como evitavam o desespero. O jeito despojado e feliz de levar a vida, e a ameaça aos ideais que todos mantinham inquestionáveis em suas mentes, e que eram utilizados como subterfúgio para afugentar as verdades desoladoras da vida, o que permitia que todos fossem capazes de evitar encarar de frente suas existências mal resolvidas e medíocres, fez com que todas as pessoas odiassem o novo funcionário. Pela primeira vez, em muito tempo, um objeto para onde seria direcionado todo o ódio se encontrava próximo, encontrava-se precisamente ao lado, ao alcance de um soco, ao alcance da violência mais irracional e descabida. E foi esse o caso.
Em apenas dois meses como funcionário, o homem incomum havia causado um rebuliço inimaginável. Todas as frustrações, todos os problemas, eram atribuídos a ele. Toda vez que o ser incomum adentrava alguma repartição, as pessoas relatavam um sentimento ruim, uma espécie de “ambiente pesado”, e isso era confirmado em coro, por todos que tinham contato com ele.
Com o passar do tempo a situação se tornou ainda mais catastrófica. Todo mundo tentava estruturar o caráter do ser incomum, e sempre construíam os personagens mais esdrúxulos, mais bizarros e malévolos, sem possuírem um único motivo para tanto. Para se ter uma ideia, até mesmo a forma como o ser incomum bebia água era utilizada como base para a elaboração de uma característica pessoal que demonstrava uma maldade sem fim. Por fim, todos os gestos eram deturpados para que as pessoas conseguissem enxergar aquilo que elas gostariam de enxergar; o motivo de toda essas deturpações era o questionamento que o ser incomum incitava nas pessoas à sua volta. Vendo seus valores absolutos sendo testados, essas pessoas se apressavam e não hesitavam em tentar desmerecer e rebaixar aquele que incitava o questionamento, até que ele não mais fosse valorizado a ponto de causar um mal-estar conceitual. No entanto, a desvalorização era tão absurda que criava um indivíduo digno de ser responsável por todas as frustrações, tornando-o o alvo perfeito para o ódio ilimitado e para as transferências que protegiam o ego de se sentir impotente, ambas características presentes na maioria dos funcionários.
Ao fim do terceiro mês o ser incomum já havia recebido um apelido, ele era conhecido por todos como sendo o monstro. Ele se tornou o responsável por todos os acontecimentos ruins, que iam desde o café que foi derramado no chão até, pasmem, à nota baixa do filho de um dos funcionários. As demonstrações de desprezo contra ele se tornavam cada vez mais explicitas. Constantemente ele se via obrigado a se livrar de agressores, tanto verbais como físicos, assim como se via obrigado a ignorar insultos gratuitos, que eram pronunciados por todos.
Mesmo com um ambiente completamente hostil à sua volta, o ser incomum se mostrava inabalável, deixando transparecer toda a sua vivacidade, toda a sua alegria pura e sincera. A construção conceitual incoerente, feita pelos funcionários, mostrava o quanto o ser humano é capaz de acreditar em qualquer coisa que deseja, que se propõe a acreditar. Aquele que era considerado o pior ser humano do mundo parecia um santo quando analisado por alguém que possuísse uma interpretação imparcial. Incapaz de odiar, ele possuía um sorriso fraternal, que era interpretado por todos os funcionários como sendo o sorriso de um demônio.
A permanência do ser incomum naquela empresa, que já vinha sendo direcionada para uma estada curta, por causa daquilo que sua constituição incomum causava nas pessoas à sua volta, chegou, finalmente, ao fim, de fato. Durante o almoço, um funcionário, sentado a três mesas de distância do ser incomum, deixou cair sua bandeja, esparramando uma grande quantidade de comida pelo chão, que estava impecavelmente limpo; sem se preocupar em limpar toda aquela comida que estava no chão, o funcionário se dirigiu, cheio de ódio, até a mesa do ser incomum, e, transbordando de raiva, começou a xingar à plena voz.
“Você é o culpado de tudo isso, seu merda, seu monstro! Todos te odeiam, você é o mal da humanidade, você é um monstro do mal, Judas!”
O ser incomum olhou de forma indiferente para aquele interlocutor exaltado, e após uma interrupção de em torno de 5 segundos, voltou a se alimentar despreocupadamente. A sua atitude de indivíduo intocável irritou ainda mais o funcionário exaltado, que tentou partir para cima do ser incomum, mas foi interrompido por outros funcionários.
O acontecimento repercutiu quase que instantaneamente. Todos diziam que o ser incomum era o culpado, explicando que isso foi demonstrado pela maneira como ele se portou perante o confronto, entre ele e o funcionário prejudicado por ele. Todos diziam que aquele semblante sereno e indiferente, durante uma discussão, era digno de alguém que, com certeza, era culpado, e essa afirmação foi defendida por todos, por mais incoerente que possa parecer. Entretanto, que culpa o ser incomum tinha ninguém sabia, mas todos o julgaram culpado.
A diretoria, que se incumbiu de cuidar do caso, decidiu demitir o funcionário que foi acusado por todas as pessoas que presenciaram a confusão. Após quatro meses a empresa recuperou sua atmosfera habitual, as coisas voltaram a ser como eram, sofrendo apenas uma única mudança, o ser incomum ser tornou, para muitos, uma imagem responsável, para sempre, por todos os acontecimentos ruins, uma imagem abjeta e permanente, para onde era direcionado todo o ódio.

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