terça-feira, 30 de agosto de 2016

Não confie em ninguém

             A empresa Oleto se preparava para um momento crucial de sua breve existência. A sociedade limitada, que foi fundada há 7 anos e era especializada em processos de automação inovadores — sendo a logística ousada, que integrava vários setores da empresa, o principal diferencial. Mesmo com essa vantagem comercial gritante, que reduzia em larga escala o tempo de realização dos serviços, a empresa vivenciava um momento tenebroso.
            A ampliação de um dos setores, durante um momento econômico de recessão prolongada, havia reduzido drasticamente o caixa; atrelado a essa redução exagerada, a companhia não conseguia atrair novos clientes, novos projetos, fazendo com que os fluxos de caixa se tornassem cada vez menores, obrigando os dirigentes a realizarem massivos cortes de gastos, que incluíram demissões, reduções de cargas horárias, racionamentos e reengenharia de processos.
            Mesmo com a redução dos gastos, a empresa não conseguiria se manter viva por muito tempo. A única esperança consistia na entrada de um grande serviço, que estava sendo orçado e exigia muito esforço por parte da reduzida equipe da Oleto.
            O possível cliente, que era uma multinacional de destaque, deixava clara a realização de múltiplos orçamentos, com diferentes empresas. Esse fator aumentava, por si só, o nível de exigência requerido aos funcionários. Entretanto, para agravar ainda mais o estresse que a situação gerava, o possível cliente exigia a realização de tarefas e apresentações periódicas, sendo elas as principais responsáveis por determinar quem iria produzir o serviço grandioso.
            Os setores de programação e hardware se preparavam para uma apresentação conjunta, de extrema importância, que, de acordo com os representantes da multinacional, seria a etapa decisiva em se tratando da escolha do fornecedor.
            O setor de programação possuía dois funcionários: 1 dirigente e 1 engenheiro elétrico; muitos dos trabalhadores do setor tinham sido demitidos, todos sendo indicados pelo dirigente. Os primeiros dispensados do setor foram aqueles que não compartilhavam das ideias do dirigente, de suas aflições e ódios. O único funcionário remanescente era alguém que compartilhava das crenças e pontos de vista do seu superior imediato. Os dois desprezavam o dirigente do setor de hardware, sendo esse desprezo agravado em função da possibilidade de promoção, para o cargo de diretor de processos, que estava vago e poderia ser preenchido em um momento futuro, onde a situação econômica fosse melhor.
            Rodrigo, o dirigente do setor de programação, admitia a superioridade hierárquica de seus dirigentes. Ele atribuía essa superioridade a oportunidades de estudos, as quais ele não teve, fazendo com que ele se conformasse com seu papel inferior; no entanto, ele constantemente se imaginava como possuidor de oportunidades similares, o que fazia com que, em sua imaginação, se tornasse superior a todos os dirigentes, fazendo com que desprezasse, até certo ponto, as posições de seus superiores, que, em sua mente, poderiam ser muito melhores. Apesar desse desprezo oculto, Rodrigo era solicito e sempre procurava agradar aos chefes, fazendo uso de expressões completamente artificiais que poderiam ser identificadas facilmente através de uma observação um pouco mais aprofundada. Ele mantinha tais relações com muita habilidade, sem que ninguém desconfiasse dos motivos egoístas de suas ações, que visavam nada além do que a autopromoção, nada além do que melhores oportunidades dentro da empresa. Essa constatação, por mais simples que possa parecer, não era obtida por ninguém, o que permitia a manutenção da estima dos dirigentes, em função de atitudes falsas e calculadas. As pessoas nunca prestam atenção em nada!
            A subordinação e aceitação de inferioridade com muitos deslocamentos, logicamente de Rodrigo se restringia apenas aos dirigentes. Em relação aos outros funcionários, ele não admitia se enxergar como sendo inferior. A todo o momento em que isso ocorria, ele se sentia muito mal e reduzido, fazendo com que se esforçasse ao máximo para desvalorizar aquilo que lhe causava dor. De posse dessa característica intrínseca, ele era exímio na tarefa de reduzir e desprezar os feitos alheios.
           
            O trabalho excessivo, para a preparação da apresentação via videoconferência, havia desgastado João, que sofria com problemas de saúde. Essa debilidade inesperada fez com que ele tomasse uma medida drástica.
            Ele chamou Rodrigo em particular e lhe pediu um favor:
            “Oh, estou me sentindo muito mal. Você poderia me fazer um grande favor?”
            “Claro! É só falar. E, por sinal, gostei muito da sua camisa, a cor é muito bonita, e os detalhes são harmoniosos, além disso, ela parece ser muito confortável. Onde comprou?”
            “Obrigado! Comprei em uma loja no shopping, depois te passo o nome dela.”
            “Ah, muito obrigado. Seria muita gentileza de sua parte. E me desculpe pela interrupção, não pude evitar deixar de fazer tal observação de algo que me agradou bastante. Por favor, continue com o que queria me falar.”
            “Oh, claro... Eu pensei que poderia aguentar até a apresentação, mas vejo que me enganei em pensar dessa forma. Sinto, nesse momento, que preciso, urgentemente, ir ao médico. Tenho medo de que não consiga voltar a tempo para a apresentação. Gostaria de informar a algum dos dirigentes sobre essa situação, mas nenhum deles se encontra presente no momento. Tentei até mesmo ligar para um deles, mas deu ocupado, acho que eles também estão se preparando para a apresentação...”
            “Você tem certeza que não consegue aguentar até a apresentação? Você não me parece tão mal, e sei que é forte e pode aguentar até lá.”
“Bem que eu queria, mas é impossível, não estou me aguentando em pé.”
“Isso é uma pena! Em relação aos dirigentes, fui informado que eles estão em uma reunião particular, elaborando algumas estratégias para conseguirem, na videoconferência de hoje, fechar o serviço. Acho que você não deveria incomodá-los.”
“Entendo... Acho que você tem razão.”
Ele olhou receoso para Rodrigo, e, após um breve momento de hesitação, disse:
“Meu amigo, eu realmente preciso ir ao médico. Se eu não voltar a tempo, você poderia fazer a minha apresentação? Sei que é pedir demais, mas a situação é urgente.”
“Não se preocupe, amigo. Farei isso por você. Antes, gostaria de saber se preparou algumas referências impressas para a apresentação, Assim como também gostaria de saber se sou o único a ser informado dessa sua partida inesperada.”
A expressão maliciosa de Rodrigo era gritante, mas não pôde ser percebida por João, que era incapaz de relacionar algumas características a determinados pensamentos e possibilidades, o que fazia com que os aspectos mais chamativos e perigosos permanecessem incógnitos.
“Oh, meu amigo. Muito obrigado, muito obrigado mesmo! Eu separei algumas folhas que estão na minha mesa e deverão ser utilizadas como referência para a apresentação. E sim, você é o único a ser informado sobre isso; tentei aguentar até a apresentação, mas vejo agora que não consigo, e que essa foi uma péssima ideia, que fez com que eu me desgastasse ainda mais. Essa minha tentativa me deixou ainda pior, fazendo com que eu não mais seja capaz de aguentar nada, estou muito mal, preciso urgentemente ir ao médico. Você poderia avisar aos dirigentes sobre isso? Você acha que pode realizar a minha apresentação? Ela é de suma importância para o...”
Rodrigo o interrompeu e disse com convicção:
“Pode deixar comigo, João. Conheço o suficiente sobre o seu setor para ser capaz de realizar a apresentação. Além disso, trabalhamos muito tempo, conjuntamente, em nossas apresentações, aspecto esse que me permite apresentar o seu trabalho, assim como lhe permitiria apresentar o meu.”
“Isso é verdade.”
Respondeu João, mais aliviado.
“Agora que já resolvemos esse assunto importante, acho que você deveria ir, imediatamente, ao médico. Sinto muito em dizer isso, mas, realmente, você parece estar muito mal. Pode deixar que avisarei a todos sobre sua ausência”
“Você tem razão, Rodrigo. Nem ao menos consigo me aguentar de pé. Vou imediatamente ao médico, até mais. E, mais uma vez, muito obrigado.”
João saiu apressado, enquanto Rodrigo permanecia imóvel, absorto em pensamentos intermináveis. Aquilo que se desenhava à sua frente parecia ser a situação ideal, com a qual ele sempre sonhara. Em sua mente, ele se deparava com a oportunidade ideal para desmoralizar João e torna-lo um personagem secundário na disputa pelo cargo de diretor de processos.
Ele já havia imaginado todos os aspectos que o beneficiariam. Ele iria fingir-se surpreso, assim como todos os presentes na apresentação, com a ausência de João. Ao mesmo tempo, ele planejava tentar realizar a apresentação alheia, com isso mostrando comprometimento para com o projeto, característica essa que ele iria se esforçar para mostrar que o outro dirigente, que se ausentou, não possuía.
O plano inescrupuloso deveria ser muito bem executado, pois qualquer falha poderia fazer com que tudo aquilo se voltasse contra ele.
Mesmo com uma grande possibilidade de erro, Rodrigo se sentiu confiante, e encarava aquela situação como sendo a oportunidade perfeita, e única, podendo até mesmo resultar na demissão de João. A época tenebrosa pela qual passava a empresa não descartava tal possibilidade. Em sua mente uma linha de pensamento o encantava: “Muitos funcionários foram demitidos sem nenhuma falta grave, imagine o que ocorrerá, nesse momento delicado pelo qual passamos, com um funcionário que comete uma falta grave, ainda mais relacionada com o projeto mais importante da existência dessa empresa. Com certeza ele será demitido e eu não mais terei concorrentes para a posição de diretor de processos”.
Esses pensamentos percorriam, incessantemente, a sua mente.

Naquela noite, durante a videoconferência, Rodrigo apresentou sua parte do projeto e tentou apresentar a parte de João, sempre salientando a falta de respeito do colega em não o avisar sobre sua ausência. A todo o momento ele salientava o fato, fazendo com que os dirigentes, que estavam presentes na apresentação, se sentissem ainda mais inconformados com aquela ausência inesperada.
Os representantes da multinacional se sentiram incomodados com a ausência, considerando-a como uma falta de comprometimento imperdoável, que colocava em dúvida a capacidade da Oleto em cumprir as tarefas que deveria executar para a realização do grandioso serviço, sendo essas suspeitas suficientes para abalar a confiança e, consequentemente, a possibilidade de realização de negócios.
Essa característica fez com que a ausência de João fosse agravada ainda mais.
Ao mesmo tempo que a Oleto perdia sua principal chance de salvação, Rodrigo se esforçava para deteriorar, ainda mais, a imagem do colega, que, após retornar à empresa depois de alguns dias internado com pneumonia, se tornou absurdamente abjeta.
            Mesmo com suas tentativas esforçadas de defesa, a mentalidade dos dirigentes já estava decidida. Em função daquilo que consideravam ser uma ausência sem aviso prévio, sem qualquer tipo de comunicação a quem quer que fosse, em um momento de extrema importância para a empresa, e que comprometeu um projeto importante, João foi demitido e o seu setor foi integrado ao setor de programação.

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